"A NOITE PASSADA EM SOHO", DE EDGAR WRIGHT
Em termos de comédia atual, poucos fazem um uso tão inteligente dos utensílios cinematográficos como Edgar Wright. Da maneira como transforma a montagem numa ferramenta para ilustrar os diálogos ("É o Fim do Mundo" inclui alguns dos melhores exemplos dessa prática) à aproximação constante de uma certa noção de musicalidade (pensemos no musical não-diegético que era "Baby Driver", onde os movimentos rápidos, as derrapagens audaciosas, as curvas apertadas, as paragens bruscas, eram sempre ao som das notas, acordes, pausas e suspensões dos Jon Spencer Blues Explosion), o ritmo da ação é o mesmo do das canções que preenchem as extensas bandas-sonoras.
No entanto, os seus filmes têm vindo a tornar-se mais "sérios" (à falta de um termo mais adequado), ora secundarizando a comicidade frenética que julgávamos ser inerente ao trabalho de Wright, ora utilizando-a para pontuar a melancolia que as suas personagens tendem a carregar. "A Noite Passada em Soho", enquadra-se na segunda categoria e representa até ver o maior OVNI da sua carreira. Isto é, um filme de terror à moda antiga, que fica a meio-caminho entre "Repulsa" (1965) e "Suspiria" (1977).
Nele, acompanhamos Eloise (resplandecente Thomasin McKenzie), uma aspirante a designer de moda, com um fascínio obsessivo pela cultura e a iconografia da Londres dos anos 60, que abandona a sua casa na Cornualha, para seguir os seus estudos na capital britânica. Contudo, rapidamente se vê enredada num bizarro mistério, quando começa a ser assombrada por visões de Sandy (Anya-Taylor Joy), uma cantora que viveu (e desapareceu) em meados da década de 60, com quem Eloise partilha algumas semelhanças...
Escrito a quatro mãos (Krysty Wilson-Cairns, co-autora do guião de "1917", junta-se a Wright), "A Noite Passada em Soho" é um prazer labiríntico, que se vai divertindo a subverter expectativas, enquanto desmonta a iconografia londrina, no processo, expondo a componente tóxica da nostalgia. Aqui, encontramos o trauma do passado, a ambiguidade psíquica que paira como incógnita sem solução, a ambição ingénua e a decadência a que pode conduzir, os sonhos febris feitos de planos subjetivos caleidoscópicos e sobreimpressões fantasmáticas. Se lembra os velhos giallos? Claro, aliás, a sombra de Dario Argento assombra cada frame como um fantasma, mas Wright não se limita a organizar uma parada de referências para massajar o ego cinéfilo do espetador, ele presta homenagem aos que vieram antes de si, mas ao citar, ao reimaginar, cria sempre algo seu.
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Texto de Miguel Anjos
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