Avançar para o conteúdo principal


"THE CARD COUNTER: O JOGADOR", DE PAUL SCHRADER

“Cada realizador só faz um filme na sua vida, e depois arranja diferentes maneiras de o refazer.”

Quem o disse foi Jean Renoir (o mesmíssimo senhor que nos providenciou títulos como "A GRANDE ILUSÃO" ou "A REGRA DO JOGO") e, mesmo que possamos reconhecer que essa afirmação define melhor o arquétipo clássico do "autor" como "idealizado" pelos escribas da Cahiers du Cinéma, a verdade é que existem mesmo muitos realizadores que se identificariam com essa asserção, entre eles, Paul Schrader.

Então, o que é "o filme de Paul Schrader"? Pois bem, é o conto de um homem solitário, obsessivo e alienado que, ao deixar o espaço contraditório de dor e conforto em que escolhe isolar-se, parte rumo a uma jornada infernal de impulsos autodestrutivos onde, após um ato catártico de violência, poderá alcançar a redenção.

De "TAXI DRIVER" a "NO CORAÇÃO DA ESCURIDÃO", passando por "PERIGO INCERTO" e "O ACOMPANHANTE", todo o seu trabalho, seja como argumentista, realizador ou ambos, consistente na conceção de variações (maiores ou menores) desse conceito. Aliás, ele é o primeiro a resumir todos os seus filmes a uma singela linha: "um homem num quarto".

Portanto, faz todo o sentido que a sua mais recente longa-metragem, "THE CARD COUNTER", entre nós, lançado com o subtítulo "O JOGADOR", comece com o seu protagonista, de seu nome William Tell (Oscar Isaac), encarcerado por crimes que o filme demorará algum tempo a revelar. Cedo entendemos que o seu quotidiano se resume ao desenrolar de um conjunto de rituais que Tell não se permite a quebrar. Porquê? Pois bem, ele não acredita na "banalidade do mal", como teorizada por Hannah Arendt, só no “mal”, isto é, na prática voluntária do horror desumano. Mas Tell também acredita na palavra “expiação”.

Tal é magnificamente exemplificado numa cena na cadeia, em que Tell rouba provocadoramente parte do almoço a um condenado robusto. Este responde-lhe com um murro vigoroso, que ele acolhe sem resistências. Volta a provocar e é de novo agredido. É uma cena económica que demonstra como Tell implora pela sua penitência, desesperado por uma punição suficientemente grande para o absolver dos pecados passados e apaziguar a aflição infligida pela sua consciência.

Ele um homem que viveu pela espada, mas não teve a sorte de morrer por ela, escolhendo enfrentar as consequências psicológicas dos pecados que cometeu por um período de tempo interminável. Não é, portanto, só um quarto o espaço onde vive, é também um purgatório autoimposto. Acontece que, durante o encarceramento, Tell aprendeu a jogar cartas, tornando-se mesmo exímio nesse "passatempo", que se torna numa espécie de ofício quando é libertado, passando os seus dias a andar de casino em casino, ganhando apenas dinheiro suficiente para lhe garantir alojamento e alimentação.

A certo ponto, perguntam-lhe porque não aproveita o seu talento e persegue voos mais altos, mas nada disso lhe interessa, nem que seja só porque a costela masoquista de Tell o convenceria sempre a negar qualquer procura por glória. No entanto, ele vê uma possível saída desse purgatório autoimposto por via de Cirk (Tye Sheridan), um rapaz traumatizado por um passado que se liga ao de Tell, resta saber se isso lhe trará descanso ou acentuará a sua inquietude permanente.

Ancorado numa performance de invulgares nuances emocionais de Oscar Isaac, demonstrando-se capaz de expor a vulnerabilidade de uma personagem que aparenta controlar em absoluto os seus atos e respetivas consequências, "THE CARD COUNTER" assume os contornos de uma parábola visceralmente americana: o contador de cartas é aquele que tenta redimir-se da violência que protagonizou, procurando uma pureza que o destino talvez não possa garantir-lhe. Estamos, assim, perante um filme que combina a crónica intimista com a parábola política, tudo servido por uma mise en scène de insuperável rigor, reduzindo tudo ao essencial e fazendo mais um filme digno dos mestres que venera, até porque, também Schrader é um dos mais importantes cineastas americanos da contemporaneidade ou não.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)