A segunda longa-metragem da realizadora de "À Beira da Loucura" (2019), estreia que não passou pelas salas nacionais, no entanto, pode ser encontrado na biblioteca do TVCine+, chega com o Leão de Ouro do último Festival de Veneza e tem sido apontado como um verdadeiro acontecimento do cinema europeu recente.
Adaptação de um livro parcialmente autobiográfico de Annie Ernaux (recordemos que um outro romance seu apareceu nos cinemas portugueses recentemente, "Uma Paixão Simples", assinado por Danielle Arbid) acompanha uma jovem estudante universitária e a sua tentativa de fazer um aborto na França dos anos 60, quando a interrupção voluntária da gravidez não só era punida por lei mas podia decretar a morte de quem a tentasse, muito por culpa da falta de condições de algumas soluções clandestinas.
Exemplo de um realismo social enxuto e sempre verosímil, que inevitavelmente traz à mente a obra de Jean-Pierre e Luc Dardenne (pensemos em "Rosetta" ou "A Criança")"O Acontecimento" é um drama contundente que olha, sem maniqueísmos, para um tema ainda polarizador. No entanto, Diwan não procura elaborar nenhum tipo de ensaio sobre um tema fraturante, escolhendo retratar o sofrimento permanente e sufocante da personagem de modo contagiante. Aliás, seja pelo claustrofóbico formato quadrangular do ecrã, pela forma obsessiva como a câmara se cola à pele ou pela intensidade transmitida pelo olhar de Anamaria Vartolomei, "O Acontecimento", a espaços parece evocar a tensão de algum cinema de género francófono contemporâneo, que encontra em autores como Gaspar Noé ("Clímax"), Bertrand Bonello ("A Criança Zombie" ou Julia Ducournau ("Titane"), os seus expoentes máximos.
"O Acontecimento" é, por isso, mais que um mero retrato de uma realidade que é ainda a de muitas mulheres, obviamente, essa componente social e política não pode ser colocada de lado, mas aquilo que Diwan fez foi criar um sublime thriller do quotidiano, onde se reivindica o direito de viver livremente, naturalmente implicando o controlo sobre o corpo e a sexualidade. Tudo isto, concretizado graças à simbiose que se desenvolve entre a câmara atenta da realizadora e a composição minuciosa de Vartolomei, por certo, uma das mais impressionantes que tivemos o prazer de testemunhar nos últimos tempos.
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Texto de Miguel Anjos
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