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CRÍTICA - "A LEI DE TEERÃO"


No Irão, a pena para a posse de drogas ilegais, independentemente da quantidade, é a morte. O que não impede o número de toxicodependentes de subir vertiginosamente de ano para ano. Aquando da produção de “A Lei de Teerão”, estima-se que existissem cerca de 6.5 milhões de consumidores (“Just 6.5” é, aliás, o título internacional do filme). Desconcertado com essa realidade, o realizador e argumentista Saeed Roustayi resolveu rodar este policial, a meio-caminho entre Friedkin e Shakespeare.

Nele, acompanhamos Samad (Payman Maadi), um polícia na brigada de narcóticos em Teerão, uma cidade iraniana a “transbordar” de toxicodependentes, muitos dos quais sem-abrigo. A principal prioridade de Samad é encontrar Nasser Khakzad (Navid Mohammadzadeh), um barão da droga local. Depois de muitas tentativas, consegue finalmente localizá-lo, encontrando-o depois de uma tentativa de suicídio falhada, porventura, vencido pela riqueza exacerbada que conseguiu acumular.


Nada disto é linear, muito menos determinista (ou maniqueísta). Desde logo, porque as circunstâncias francamente sub-humanas em que os 6.5 milhões de toxicodependentes titulares (sobre)vivem (e também o cenário dantesco do estabelecimento prisional em que Khakzad é encarcerado), superam qualquer tentativa de descrição objetiva. Depois, porque nesse “inferno” de infinitas convulsões interiores e exteriores, sociais e políticas, nenhuma das personagens abdica da sua complexidade. Aqui não há bonecos banalmente simbólicos, apenas pessoas de carne e osso, possuidoras de todas as contradições e nuances que nos habituámos a associar ao fator humano.

Assim, “A Lei de Teerão” começa como um thriller de ação taquicardíaco, pontuado por um par de sequências capazes de persuadir até o mais apático dos espetadores a roer as unhas. Contudo, Roustayi vai transfigurando a narrativa, convidando os espetadores a reavaliar as suas simpatias pelas personagens, colocando Samad e Khakzad a digladiarem-se verbalmente em sequências excecionalmente intensas, que evidenciam as qualidades de Roustayi enquanto argumentista, permitindo-lhe tecer críticas contundentes à incapacidade da justiça iraniana em fazer frente ao número avassalador de vítimas da droga no Irão.


Nesse sentido, o filme de Roustayi assume-se como um descendente de títulos como “Tropa de Elite” ou “Os Miseráveis”, utilizando os códigos do chamado “cinema policial”, para elaborar um retrato social, que tanto nos convida a questionar a moralidade dos envolvidos (ninguém se evidencia como um modelo a seguir), como nos pede que empatizemos com as suas circunstâncias. Aliás, essa atitude é mesmo exemplificada por um momento em que Khakzad “abre a alma”, expondo-se, simultaneamente, como uma vítima e agressor. Alguém que apenas enveredou pelo mundo do crime por não ter nenhuma alternativa “honesta”.

Quando confrontado com tal justificação, o juiz não hesita em perguntar-lhe porque não parou quando conseguiu cultivar alguma riqueza. Khakzad, despido emocionalmente, não tem pruridos em explicar, quando podia, de facto, abandonar o mundo do crime, já este o tinha corrompido até ao tutano. É uma cena extraordinariamente poderosa, que quase sintetiza o apelo deste brilhante filme, a meio-caminho entre as convenções do thriller judicial e as características simbólicas e reflexivas do conto moral. No inferno em que se tornou Teerão, não existem heróis, nem vilões, apenas anjos caídos em busca de uma redenção que insiste em nunca chegar. Entretanto, a danação espreita por todos os cantos e escapar-lhe não está mesmo ao alcance de qualquer um…

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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