Recentemente, os realizadores Mohammad Rasoulof e Mostafa Al-Ahmad foram encarcerados no Irão, enquanto protestavam contra a violência desproporcionada utilizada pelas autoridades (#put_your_gun_down) na repressão de manifestações na cidade de Abadan, na sequência de protestos populares pelo desabamento de um prédio que fez quarenta e uma vítimas mortais.
A 9 de julho, a Variety publicou um artigo sobre o assunto, onde referia que Rasoulof e Al-Ahmad eram representantes de uma tomada de posição assinada por 70 outros membros da comunidade cinematográfica iraniana. Dois dias mais tarde, Jafar Panahi, porventura, o vulto máximo da produção local (pelo menos, desde o falecimento de Abbas Kiarostami), dirigiu-se ao procurador encarregado de tratar do caso, sendo também aprisionado.
Panahi, recorde-se, além de já ter sido encarcerado em 2010, foi nesse mesmo ano punido com a interdição de filmar durante duas décadas, o que, felizmente, não se concretizou, uma vez que, em 2010, enquanto aguardava o resultado do apelo que interpôs, realizou, sem sair de casa, “Isto Não é um Filme” (entretanto, Panahi assinou também “Taxi” e “3 Rostos”, tendo completado o inédito “No Bears” antes do sucedido).
Coincidentemente, o momento crítico que se vive no Irão, coincide com o lançamento de “A Lei de Teerão” e “Estrada Fora”, dois filmes que nos dão a oportunidade de conhecer Saeed Roustayi e Panah Panahi (e sim, o segundo é mesmo o filho do previamente mencionado Jafar), novíssimos autores, cujo trabalho tem a admirável capacidade de continuar, a meio-caminho entre a homenagem e a sucessão, as obsessões temáticas de muitos conterrâneos seus e de, simultaneamente, introduzir novos elementos, no processo, dando-nos novas portas de entrada para uma realidade sobre a qual sabemos muito pouco.
Em “Estrada Fora”, acompanhamos a caótica viagem de carro de uma família iraniana. No banco de trás, o pai (Hasan Majuni), o pai tem uma perna partida (o paralelismo com o pai de Panah Panahi, permanentemente impedido de fazer o que quer, incluindo sair do país, é óbvio) e o filho mais novo (Rayan Sarlak) não para quieto (ou calado). Entretanto, a mãe (Pantea Panahiha) tenta manter um ambiente de boa disposição, ocasionalmente, forçando-se mesmo a rir, mas mal consegue conter as lágrimas, enquanto o irmão mais velho (Amin Simiar), condutor do veículo e motivo da viagem (ainda que não saibamos exatamente porquê), luta para controlar o seu temperamento volátil (ou até desencadeado) por uma melancolia latente…
Parte do fascínio do filme tem que ver com esse mistério da situação. Não sabemos para onde segue o clã, mas vamos percebendo que há uma tristeza encoberta, uma despedida eminente, cujas emoções desarrumadas são indissociáveis de uma leitura política, através desta família espreitamos a mágoa do Irão e convém não dizer mais nada.
Segue-se um filme extraordinariamente ousado, que nunca se acomoda numa categoria imediatamente reconhecível. Em “Estrada Fora” cabe comédia e drama, o real e o surreal, apontamentos musicais e referências cinematográficas inesperadas (existem alusões recorrentes a “2001: Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, no entanto, Christopher Nolan e Zack Snyder também têm os seus filmes discutidos pelas personagens…), tudo num formato relativamente antiquado de road movie, tipicamente ligado a Hollywood, ainda que prevalente em muitas outras cinematografias.
Panahi vai-nos trocando as voltas constantemente, providenciando-nos gargalhadas que, subitamente, desaparecem para dar lugar a lágrimas. Nos EUA, houve quem desenhasse comparações a “Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos”, outra “dramédia” (um termo muito querido dos norte-americanos), mas existem diferenças cruciais (e impossíveis de conciliar). Acontece que, “Estrada Fora” não é um feel good movie, mesmo que os seus momentos mais prazenteiros nos possam levar a pensar que sim momentaneamente…
Nele, Panah Panahi “desarruma” as emoções, dando-nos um vislumbre profundamente tocante daquilo que é viver no Irão, um território de infinitas desigualdades e contradições, onde a liberdade aparenta ser uma mera ilusão. Que o faça de forma tão brincalhona e inteligente, apenas nos faz admirá-lo mais. “Quem sai aos seus não degenera”, diz o povo e é bem verdade. Temos cineasta!
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Texto de Miguel Anjos
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