Em 2018, a Paramount anunciou que o lançamento internacional de “Aniquilação”, a segunda longa-metragem de Alex Garland (“Ex Machina”), se encontrava cancelado. O plano passou a ser estreá-lo somente nos EUA e vendê-lo à Netflix, que asseguraria a distribuição no resto do planeta. Porquê é que esse destino se abateu sobre um filme tão antecipado (ainda para mais, com um elenco de excelência, onde encontrávamos Natalie Portman, Jennifer Jason Leigh ou Oscar Isaac)? Pois bem, segundo o estúdio, Garland teria desiludido os executivos da produtora, ao entregar “um filme demasiado intelectual”.
Garland não ficou nada contente, nem com “o fator Netflix” (à data, era ainda relativamente incomum ver um filme de “primeira linha” a aparecer somente em streaming), nem com a ideia de que teria feito uma qualquer ruminação intelectual. Aliás, ele foi mesmo o primeiro a refutar essa teoria, caracterizando “Aniquilação”, primeiramente, como um thriller sensorial. Acontece que, esse último termo é fundamental para entender a abordagem do britânico ao cinema. Os seus filmes fazem-se de ideias, por vezes, extremamente complexas, contudo, elas não são o seu foco principal. O importante é desenvolver uma experiência hipnótica, que perturbe e desconcerte, mantendo-nos num estado de perpetuo fascínio (“acima de tudo, quero evitar o aborrecimento”, dizia ele, recentemente).
Nesse sentido, “Men” é, simultaneamente, uma evolução e uma radicalização desse ideário. Novamente, somos transportados para uma terra de ninguém, a meio-caminho entre uma narrativa relativamente convencional e a alegoria. Chamemos-lhe fábula. Nele, acompanhamos Harper (Jessie Buckley), viúva de James (Paapa Essiedu), um homem violento e manipulador, que cometeu suicídio para a castigar por se querer separar dele. De modo a recuperar desse acontecimento traumático, Harper retira-se sozinha para um vilarejo na Inglaterra rural, esperando encontrar um lugar onde possa recuperar. No entanto, nem tudo é o que parece neste aparente Jardim de Éden, nos arredores de uma aldeia, onde só vivem homens… e homens que têm todos a mesma cara (a de Rory Kinnear, mais especificamente), ou melhor, que parecem ter todos a mesma cara.
Uma metáfora para a chamada “masculinidade tóxica”? Caso queiramos cair no simplismo maniqueísta que impera sobre o quotidiano noticioso (e não só), certamente. Contudo, as nuances de “Men” impedem-nos (ou deviam impedir-nos) de o caracterizarmos como um mero “filme de mensagem”. Pelo contrário, Garland concebeu um meticuloso thriller de terror caleidoscópico, aberto a uma multiplicidade de leituras complementares (“Men” tanto tem de olhar sobre a natureza cíclica do trauma, como de crítica às falhas morais da ideologia cristã, por exemplo), conduzido com a segurança de um artista em completo domínio do seu métier.
Delirante e provocador, desorientante e surpreendente, “Men” combina a “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o body horror à lá David Cronenberg e as componentes pagãs do terror britânico dos anos 60 e 70 (“The Wicker Man”, de Rob Hardy, será o expoente máximo desse período), para criar um cocktail de emoções explosivo. Uma verdadeira bomba sensorial, que cedo se aloja na nossa epiderme e não de lá sai até um clímax de deixar qualquer um boquiaberto.
O impulso perante um filme tão obsessivo é atribuir todo o mérito ao realizador (e Garland, certamente, merece uma salva de palmas), mas, “Men” encontra no exemplar trabalho dos atores, uma ancora para a excentricidade da narrativa. Kinnear é um assombro, providenciando uma personalidade e “aura” distintas a cada um dos seus “homens”, mesmo quando só os vemos durante uma ou duas cenas, e Buckley prova-se novamente possuidora de um talento que não tem limites, encarnando com precisão a melancolia latente de Harper, sem nunca a reduzir ao trauma que atirou para essa espiral de tristeza.
A conclusão carrega uma pontinha de ambiguidade que frustrará muitos, mas, o seu capital subversivo só serve para cimentar o estatuto de Alex Garland como uma voz singular no cinema contemporâneo. Um realizador que consegue fazer sempre o mesmo filme, sem nunca se repetir narrativa e esteticamente. Venha o próximo!
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Texto de Miguel Anjos
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