Em 1988, Ricky Park (Jacob Kim), um rapazinho norte-americano, de ascendência sul-coreana, tentava reafirmar a sua popularidade com “Gordy's Home”, uma sitcom que acompanhava o quotidiano da família Houston e do seu macaco de estimação, Gordy (Terry Notary). A série era um retumbante sucesso junto das audiências, no entanto, foi “sol de pouca dura”. Certo dia, Gordy, ou melhor, um dos símios utilizados para os propósitos da rodagem (segundo nos informa Ricky, a produção tinha 3 primatas ao seu dispor), cansa-se do seu dia-a-dia massacrante e abusivo e assassina todos os membros da equipa, exceto o pequeno Ricky…
Em 2022, Ricky trocou Los Angeles por Agua Dulce, em El Paso, onde ínumeros westerns foram filmados ao longo dos anos, ultrapassou o seu trauma, tornou-se patriarca de uma família numerosa e fundou o "Jupiter's Claim", um parque que ressuscita as filosofias fantasiosas (e amorais) daquelas aventuras de cowboys antiquadas, que se contentavam em encenar os primórdios dos EUA com um maniqueísmo de quem apenas vê bons e maus, enaltecendo os colonos como heróis relutantes e os retratando os nativos como criaturas sedentas de sangue. Claramente, o negócio já viu melhores dias (a ruína fantasmática e anacrónica de uma cultura mais ariana que branca nos EUA contemporâneos, é uma constante no cinema de Jordan Peele), contudo, ainda lhe providencia dinheiro suficiente para lhe permitir ser um dos abastados habitantes de Agua Dulce.
Aliás, se OJ Harewood (Daniel Kaluuya, ator fetiche de Peele) ainda consegue manter o seu rancho aberto, é devido aos cavalos que tem vendido a Ricky. É que, OJ nunca recuperou do falecimento prematuro e inexplicável do pai (Keith David), limitando-se a fazer os mínimos para manter o seu negócio à tona? Que negócio é? Os Harewood criam e treinam cavalos para que os quadrupedes possam ser utilizados em produções audiovisuais (uma das primeiras cenas relata mesmo as filmagens de um anúncio publicitário), mantendo viva a conexão que os Harewood têm com o cinema (um dos seus antepassados fora o cavaleiro negro que o Eadweard Muybridge acompanhou por via da fotografia, numa experiência tradicionalmente reconhecida como um capítulo da "pré-história" do cinema). No entanto, OJ, a irmã, Emerald (Keke Palmer) e Ricky, todos começam a suspeitar de que algo de muito estranho pode estar a suceder. Nem que seja só porque uma das nuvens que sobrevoa o rancho dos Harewood nunca se move, independentemente, do passar do tempo…
Tecer comentários acerca de “Nope” (ou mesmo elaborar uma mera sinopse) é tudo menos automático. Por um lado, porque a civilidade nos impede de adiantar detalhes potencialmente importantes. Por outro, porque todos os elementos que constituem a sua narrativa carregam algum tipo de significado (muito) específico, mesmo que isso só venha a tornar-se evidente mais tarde. Portanto, mantendo a vagueza, vale a pena enaltecer a capacidade de Jordan Peele de construir um thriller intelectualmente estimulante, que se encontra bem mais próximo de Truffaut e Godard do que de Steven Spielberg.
Acontece que, “Nope” é, simultaneamente, um blockbuster antiquado (nesse sentido, mencionar o “Encontros Imediatos do Terceiro Grau”, de Spielberg, é plausível) e uma desconstrução metódica, irónica e francamente melancólica do blockbuster. Experimental? Possivelmente. Lúdico? Sem dúvida. Peele nunca escondeu o seu interesse pela dimensão poética e política do cinema de terror (Carpenter é, afinal, o realizador que mais admira) e “Nope” retoma esse fascínio, levando-nos a repensar a natureza predatória e exploratória do que denominamos, inocentemente, de “espetáculo”.
Que “espetáculo” é esse? A preguiça levar-nos-ia a dizer que é o cinema (e “Nope” é mesmo um filme sobre o cinema, nem que seja só pela maneira astuta com que faz uso de referências iconográficas e não só), mas, se ampliarmos o escopo desse raciocínio, não demoramos a entender que Peele quer falar da forma como as imagens se apoderaram do nosso quotidiano, seja por via dos telejornais sensacionalistas, que repetem, vezes sem conta, os mesmos excertos audiovisuais, habitando-nos à brutalidade, por vezes, dessensibilizando os espetadores para os horrores que relatam, ou das redes sociais, que convenceram muita gente a fazer “fotorreportagens” do seu quotidiano, documentando todos os seus movimentos, “explorando” até os seus momentos mais íntimos em prol de um mero “gosto”.
Por entre sinédoques visuais e parábolas, sanguinolência e humor, niilismo e humanismo, “Nope” vai desenvolvendo as suas personagens e as circunstâncias em que se encontram com a gravidade de uma tragédia antiquada, porventura, milenar. Não será, afinal, coincidência que Peele tenha escolhido permear o seu filme de referências ao imaginário judeu, da absoluta omnipresença do número 613 (central na mitologia judia) à citação que abre o filme, da autoria do profeta Naum, comentando a queda do império assírio (“Lançarei sobre ti coisas abomináveis, envergonhar-te-ei e farei de ti um espetáculo”).
Ver a forma como estes elementos se entrelaçam, complementando-se mutuamente e formando um comentário coerente e provocador sobre a natureza predatória de vários modelos de espetáculo, a vulnerabilidade do domínio exercido pelo homem nos ambientes que pensa serem seus e, por fim, a própria condição humana, é um prazer imenso, especialmente, porque “Nope” nunca cai na armadilha do filme de “mensagem”, saturado de “chaves” de interpretação capazes de apaziguar todas as dúvidas e hesitações que o espetador possa sentir, ainda que seja óbvio, desde o primeiro minuto, que todos os detalhes contam. É desconcertante, surpreendente, inteligente e, a espaços, até hilariante.
Por “Nope” perpassa o genuíno gosto da fábula, celebrando o património cultural norte-americano, sem se esquecer de reconhecer a existência dos muitos fantasmas que pairam sobre a memória histórica do seu povo. Nesse processo, como sempre acontece no cinema de Peele, os atores são absolutamente fundamentais. E se, Kaluuya é um destaque natural, imbuindo o seu OJ de um fascinante ar de herói relutante, não há como esquecer a energia eletrizante de Keke Palmer ou a composição de invulgares nuances emocionais de Steven Yeun, como o iludido Ricky, simultaneamente, opressor e oprimido, explorador e explorado, inconscientemente, à deriva, sem ferramentas para interpretar e ultrapassar as circunstâncias que lhe foram impostas.
Grande, gigantesco filme.
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