Quem é Todd Field? É legítimo perguntar, uma vez que, a sua prolongada ausência, pode ter levado a que alguns se esquecessem do seu nome... Acontece que, o realizador de "Vidas Privadas" e "Pecados Íntimos", não passou os últimos 16 anos quieto, tendo trabalhado com Joan Didion, Ridley Scott, Keanu Reeves, Leonardo DiCaprio, Martin Scorsese e, principalmente, Daniel Craig, com quem terá passado muitos, muitos anos a desenvolver uma adaptação de "Pureza", de Jonathan Franzen, para a Showtime. Nenhum desses projetos saiu do papel, no entanto, Field lá conseguiu quebrar o longuíssimo hiato em que se encontrava com aquele que será, porventura, o seu título mais ambicioso à data, "TÁR", um argumento original (em "Vidas Privadas" e "Pecados Íntimos", adaptava Andre Dubus e Tom Perrotta, respetivamente), que procura dialogar com o nosso "aqui e agora".
Tár é o apelido de Lydia (Cate Blanchett), uma maestrina norte-americana, que se tornou na primeira mulher a dirigir a Filarmónica de Berlim. Conhecemo-la no auge da sua ilustre carreira, enquanto antecipa o lançamento de um livro (intitulado "Tár on Tár") e se prepara para uma performance ao vivo da Sinfonia nº5 de Gustav Mahler. Tár aparenta controlar todos os aspetos da sua vida, no entanto, esse domínio é ameaçado pelo suicídio de uma ex-protegida, com quem terá passado algum tempo na Amazónia. Subitamente, a vida íntima (e profissional) da maestrina fica sob escrutínio, fragilizando o seu estatuto na Filarmónica (e não só), o relacionamento (estranhamente frio) que mantém com a esposa Sharon (Nina Hoss) e, em última instância, a sua sanidade...
Importa manter algum secretismo acerca daquilo que acontece em "TÁR", até porque, como comentou Martin Scorsese recentemente, uma das maiores qualidades do filme é a sua capacidade de nos surpreender, constantemente evitando cair em lugares comuns e, porventura, mais importante, simplismos maniqueístas ou panfletários. Aliás, ao abordar um mundo pós-#MeToo, onde a "cultura do cancelamento" é uma realidade inescapável, com uma frieza francamente pouco usual (sentem-se reminiscências de Stanley Kubrick, com quem Field colaborou em "De Olhos Bem Fechados") e uma ambiência inquietante e desconfortável, mais próxima do cinema de terror que outra coisa (vem à mente, por exemplo, "Yella", de Christian Petzold, um insólito remake de "O Circo das Almas", curiosamente ou não, protagonizado por Nina Hoss...), consubstanciada pela forma como Field vai deixando que uma inesperada componente onírica contamine o seu filme, traduzindo-se numa espécie de vertigem apocalíptica. Se é apenas o mundo de Tár que se encontra em processo de decomposição ou se ela é somente o reflexo de uma sociedade que caminha para uma desagregação irreversível, cabe a cada um averiguar, mas, que a sua perturbadora sinfonia fílmica é interessante (e hipnótica) o suficiente para nos manter atentos e estimulados, lá isso é.
Aí reside, porventura, o elemento mais polémico de "Tár", responsável pela sua natureza polarizadora, ou seja, numa época em que toda a gente nos diz aquilo que pensa, Field compõe este olhar sobre o nosso quotidiano mediático como uma espécie de Teste de Rorschach, providenciando-nos suficientes argumentos para justificar qualquer perspetiva. Os sentimentos e opiniões do cineasta acerca dessa suposta "cultura do cancelamento", permanecem no "mistério dos deuses", no processo, permitindo aos espetadores que cheguem às suas próprias conclusões e, quiçá, desenvolvam debates em seu torno, evitar o maniqueísmo propagandístico que corrói quase todas as formas de discurso atualmente é tudo menos simples, mas Field consegue-o, em parte, devido à valiosa contribuição dos intervenientes que reuniu em seu torno, da compositora Hildur Guðnadóttir ao diretor de fotografia Florian Hoffmeister, passando, claro está, pela extraordinária Cate Blanchett, numa performance verdadeiramente eletrizante. Seja a sua Lydia Tár vítima, carrasco ou se encontre algures no meio, a única certeza, é que não conseguimos tirar os olhos dela.
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