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CRÍTICA - "COM AMOR E RAIVA"


De 1988 até 2022, Claire Denis acumulou um alinhamento de fiéis colaboradores na escrita, imagem, montagem, composição musical e, mais notoriamente, na representação. Com elas criou e manteve em ininterrupta reinvenção um cinema subversivo, destemido, profundamente original, formado por rostos e corpos combativos. No ano passado, assinou duas longas-metragens, "Com Amor e Com Raiva" e "Stars at Noon - Paixão Misteriosa", que agora chegam às nossas salas, depois de terem percorrido os mais ilustres festivais internacionais.

O primeiro é "Com Amor e Com Raiva", onde acompanhamos Sara (Juliette Binoche, que trabalhou com Denis em "O Meu Belo Sol Interior") e Jean (Vincent Lindon, protagonista de um dos melhores e menos conhecidos títulos da cineasta, "Les Salauds", nunca estreado no circuito comercial português), acabados de regressar de umas férias na praia. Ela é uma locutora de rádio, ele saiu recentemente da prisão e tenta reconstruir a sua vida, ao lado da mulher que ama. Um dia, François (Grégoire Colin, um rosto praticamente omnipresente na filmografia de Denis, tendo aparecido em sete das suas longas-metragens), ex-companheiro de Sara e velho amigo de Jean, abre um agência que visa formar jogadores de râguebi das categorias mais jovens, e oferece um emprego a Jean como olheiro. Não parece ser lá muito boa ideia, e confirma-se que as coisas só podem correr mal, quando Sara, que não vê François há quase uma década, volta a cruzar-se com ele...


Denis nem é uma romântica, nem gosta muito de nos explicar muitos detalhes acerca das narrativas que encena (por exemplo, nunca saberemos o que levou Jean a ser encarcerado, nem o que motiva Sara a sentir-se atraída por François, conhecendo a sua natureza fria e manipuladora), em vez disso, atira-nos para labirintos elípticos, lugares suspensos no tempo, mesmo quando os sinais do contemporâneo se apresentam constantemente (as máscaras, por exemplo, fazem com que saibamos, automática e instintivamente, que nos Sara, Jean e François vivem num mundo ainda dominado pelo jugo da COVID-19), onde o fator humano e os seus fantasmas coexistem de modo perverso.

Nesse jogo de intimidades, desejos impossíveis de explicar e pecados inconfessáveis, Denis, como sempre, encontra nos seus atores, não só meros colaboradores, mas sim, coautores de corpo inteiro, deambulando por uma terra de ninguém árida, traiçoeira e contraditória, como é a condição humana, aqui materializada num triângulo amoroso que é todo um microcosmo emocional e carnal da "comédia humana". Nesse processo, a entrega de Binoche e Lindon é admirável, do prólogo luminoso à conclusão lúgubre, vemo-los navegar uma complexa galeria de sentimentos (e ressentimentos), providenciando o pathos necessário a um duo de personagens condenadas à tragédia, contudo, importa não menosprezar o trabalho de Colin, gélido, fugidio, enigmático, como um fantasma que paira sob o casal central, impondo a sua presença, mesmo quando não se encontra em cena.

Confirma-se, portanto, Denis é mesmo incapaz de fazer um filme mau, venha "Stars at Noon".

★ ★ ★ ★ 
Texto de Miguel Anjos

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