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CRÍTICA - "ESTRANHA FORMA DE VIDA"


Continua a ser tremendamente incomum encontrar curtas-metragens no circuito comercial de exibição cinematográfica. Pedro Almodóvar conseguiu convencer os distribuidores internacionais a colocar a sua adaptação de "A Voz Humana", de Jean Cocteau, no grande ecrã, no coração da pandemia. Agora, o cineasta manchego repete a façanha com "Estranha Forma de Vida", um western de apenas 31 minutos, a meio-caminho entre "O Segredo de Brokeback Mountain", de Ang Lee, e "Johnny Guitar", de Nicholas Ray.

No Q&A exibido subsequentemente à curta ("esticando" a duração para os 64 minutos, consequentemente, tornando-o mais apetecível para o programador comum), Almodóvar comenta a sua afinidade pelos westerns clássicos, por oposição ao desinteresse que sente em relação aos chamados spaghetti (excluindo, naturalmente, a obra de Sergio Leone), para ele, era importante que "Estranha Forma de Vida" devesse mais aos norte-americanos que aos italianos, que, por curiosidade, costumavam filmar as suas "coboiadas" no mesmo sítio em que Almodóvar encenou este romance trágico, na província de Almeria, em Espanha.

Nota-se, quanto mais não seja, porque Almodóvar é, sempre foi, um cinéfilo de gema, incapaz de não incluir pequenas piscadelas de olho aos filmes que estimularam a sua imaginação, contudo, "Estranha Forma de Vida" anda mais perto dos westerns revisionistas pós-anos 70 que dos clássicos de autores como John Ford, Anthony Mann ou Howard Hawks. Acima de tudo, é nos proposto que compremos um bilhete, não de cinema, mas de viagem, rumo ao universo idiossincrático, inconfundível e extraordinariamente fascinante de Almodóvar.

Assim, reconhecemos coisas aqui e ali, mas, o que mais interessa ver é a maneira como Almodóvar brinca com o western, quebrando com os seus cânones logo nos primeiros segundos, com uma sequência de abertura que coloca um cowboy de 20 e poucos anos (Manu Ríos) a tocar o seu banjo na mítica "town square", onde tantas aventuras de pistoleiros destemidos se iniciam (ou culminam), no entanto, em vez de uma cantiga country sobre a dureza (ou os prazeres) da vida rural, o que escutamos é a "Estranha Forma de Vida", de Amália Rodrigues, pela voz de Caetano Veloso (um velho amigo de Almodóvar, que, aqui, empresta o seu timbre melancólico ao corpo jovem de Ríos), em pano de fundo, Silva (Pedro Pascal) cavalga rumo ao departamento do xerife, Jake (Ethan Hawke).

Silva e Jake não se veem há muitos anos, mas, outrora, foram tremendamente próximos, a ponto de, porventura, podermos mesmo dizer que estão fadados a encontrar-se uma e outra vez, a tentar amar-se... e a falhar. A herança do western, de todos os autores mencionados e de muitos outros, pesa sobre o destino destas personagens, no entanto, "Estranha Forma de Vida" é tudo menos um filme de homenagem, pelo contrário, em apenas 31 minutos, Almodóvar demonstra-nos como consegue pegar num género, num universo iconográfico, tão codificado e torná-lo num verdadeiro OVNI, um objeto alienígena que mantém uma relação muito direta com o passado, sem deixar de ser algo distinto, de único.

Afinal, nem estamos em Espanha, nem nos EUA, mas sim, no país de Almodóvar (ou seria mais correto dizer o Planeta de Almodóvar?), um lugar enigmático e, consequentemente, sedutor, de humanismo ambíguo, porque desencantado, onde as cores são demasiado vivas, os diálogos exacerbadamente articulados na sua contundência (linda, lindíssima, a maneira como aqueles cowboys se despem com as palavras, lenta, metodicamente). Pedro nunca foi um realista, o seu cinema regozija nos prazeres do exagero, "esculpindo" contos que são espelhos distorcidos da vida quotidiana, no sensual, sensualíssimo, melancólico e, ocasionalmente, muito divertido "Estranha Forma de Vida", encontramo-lo a brincar com dois atores de exceção, Pascal exuberante como o pistoleiro que aceita, sem pudor algum, a sua condição de homossexual num mundo marcadamente hostil, Hawke comovente no papel do amante torturado, que, por mais que queira, não consegue aceitar-se como é, para lembrar que, além de narrador e esteta, Almodóvar é também um fantástico diretor de atores.

★★★★
Texto de Miguel Anjos

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