Woody Allen é como uma visita de casa que recebemos sempre de braços abertos. Os constrangimentos desencadeados pela pandemia da COVID-19 e o ambiente crescentemente hostil em Hollywood, perante o cinema dito "de autor", no geral, e a persona de Allen, em particular, impediram-no de continuar a assinar um filme por ano, depois de um longuíssimo período em que só muito raramente "falhou" essa meta. Assim, "Golpe de Sorte", a sua 50ª longa-metragem, é a sua primeira desde "Rifkin's Festival", de 2020. É pena, quanto mais não seja, porque reencontrar o cineasta nova-iorquino nas salas de cinema é uma das mais prazenteiras tradições que o mundo tem para oferecer a um cinéfilo (e não só). No entanto, a ocasião é propícia a tudo, menos a lamentos, uma vez que, "Golpe de Sorte" corresponde a um momento fulgurante numa filmografia que nunca nos deu motivos para "torcer o nariz".
O simbolismo de "Golpe de Sorte" é óbvio. Pela primeira vez, Woody é "um verdadeiro realizador europeu", como mencionou no Festival de Veneza. Ele já filmou em Espanha, França, Itália ou Inglaterra, mas, sempre como um visitante (as más línguas diriam como "um turista"), aqui, fá-lo como um local. Pela primeira vez, o idioma não é o inglês, mas sim, o francês e, no elenco, não se avista um único intérprete anglosaxónico. Para Allen, que é, provavelmente, o mais europeu dos cineastas provenientes dos EUA, é uma transição que parecia fadada a acontecer.
De facto, "Golpe de Sorte" tem qualquer coisa de culminar. De quê? De todo o cinema de Woody Allen, naturalmente. Voltamos a sentir a sombra do thriller ("Crimes e Escapadelas", "Match Point"), sem nunca abandonar a crónica romântica ("Annie Hall", "Manhattan"), conduzindo-nos a um questionamento ambíguo, porque desencantado, da natureza humana, acompanhado, naturalmente, por um sentido de humor, simultaneamente, doce e ácido.
Encontramo-nos, portanto, em Paris, onde Fanny (Lou de Laâge) e Jean (Melvil Poupaud) levam uma vida, aparentemente, idílica. Acontece que, como sempre ouvimos dizer, "as aparências iludem". Fanny sente-se entediada, mesmo antes de ter consciência disso ou coragem para o verbalizar. O mundo de Jean, personagem envolto em mistério que tem como trabalho "tornar os ricos ainda mais ricos", sufoca-a. Os seus "amigos" pedantes, mas, absolutamente vazios, os fins-de-semana no campo, "onde nada acontece" (é Fanny quem o lamenta...), com expedições de caça incluídas e, se calhar, mais importante, a atitude dele para com ela. Jean, compraz-se com os sinais exteriores de uma burguesia facilmente identificável e reconhecível, mas, ele também entende que não pertence realmente aquele microcosmos, é um "novo rico", disposto a tudo para manter e expor o estatuto que só conquistou tardiamente. Nesse sentido, Fanny não é mais que uma aquisição, um troféu a ser admirado e invejado pelos demais, preferencialmente, à distância.
Um dia, enquanto passeia pela cidade da luz, Fanny encontra Alain (Niels Schneider), um antigo colega do Liceu Francês de Nova Iorque, que nunca conseguiu confessar-lhe os sentimentos que tinha por ela. Os dois formam uma ligação que, inevitavelmente, se tornará romântica...
Trata-se de um conto de desejos malignos, destinos fatais e acasos quase divinos, onde ninguém está a salvo do acaso. Um olhar irónico sobre a futilidade da nossa ânsia por controlo, desdobrando-se numa análise das matérias, ora transparentes, ora obscuras, de que são feitas as relações afetivas entre homens e mulheres. Resumidamente, Woody voltou a confecionar um delicioso naco de bom cinema, que degustamos com uma felicidade inconfundível.
Para tal, muito contribui o labor dedicado dos atores, nomeadamente, Lou de Laâge, Melvil Poupaud e Niels Schneider que tão bem abraçam a musicalidade dos diálogos de Allen, mas, também a presença de um companheiro de longa data, como é o italiano Vittorio Storaro, cuja direção de fotografia vai acumulando pequenas proezas, pequenos milagres, utilizando a luz solar para criar imagens de inquestionável beleza.
Se acreditarmos nos rumores que se ouvem por aí, "Golpe de Sorte" pode ser o último filme de Woody Allen. Naturalmente, esperemos que não, mas, se o for, o cineasta nova-iorquino saiu pela porta grande, com um filme à sua medida, que sintetiza o apelo de uma cinematografia que nunca quis mudar o mundo e, quiçá, por causa disso, se tornou eterna.
Por isso, volta Woody e, se possível, não demores, temos sempre saudades tuas.
★★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos
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