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Crítica: "Os Fantasmas de Ismael" ("Le Fantômes d'Ismaël"), de Arnaud Desplechin



Arnaud Desplechin sempre procurou compor uma cinematografia em permanente diálogo consigo mesmo. E, “Os Fantasmas de Ismael” não funcionará como uma exceção. Tendo no centro dos acontecimentos um cineasta, que muito claramente se vai assumindo como um equivalente ficcional para o seu autor (um alter-ego se quisermos) e, cruzando muitas e variadas referências já clássicas da sua obra (sejam personagens omnipresentes como o caso de Dédalus ou Bloom ou inspirações literárias como James Joyce). Assim, seguimos as muitas atribulações do Ismael titular, à medida que tenta finalizar um thriller classicista sobre espiões e, lida com o regresso misterioso de uma mulher, que muito amou (e, ainda ama), mas não via há 20 anos… Como sempre, encontramos aqui uma narrativa, que será sempre infinitamente mais sedutora para os que já conhecem intimamente o trabalho deste autor gaulês, os seus códigos e obsessões labirínticas, que apanharam as rimas constantes com títulos anteriores. No entanto, até mesmo os “não-convertidos” encontrarão motivos para se envolverem emocional e intelectualmente (existem mesmo duas versões do filme, uma “emocional” e uma “intelectual”, sendo que no nosso país apenas teremos a segunda) neste conto melancólico sobre o envelhecimento, ancorado em composições requintadas, mas subtis de um elenco, que reúne alguns dos maiores nomes do cinema francês moderno (Marion Cotillard, Charlotte Gainsbourg, Louis Garrel e Mathieu Amalric, como sempre a servir de duplo para a figura de Desplechin), desde que estejam dispostos a deixar-se ir na experiência não-linear aqui proposta.


Realização: Arnaud Desplechin
Género: Drama

Duração: 114 minutos

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