"Domino" ("A Hora da Vingança"), de Brian De Palma
Tornou-se impossível escapar à crueldade da ironia: os autores que fizeram as “novas vagas” mundiais dos anos 60 e 70 são hoje os burgueses acomodados contra os quais se ergueram outrora, como se se tivessem conformado a um destino no qual já não se conseguem empenhar. Felizmente, ainda podemos depositar a nossa confiança nos últimos moicanos da Nova Hollywood. Gente como Martin Scorsese, Peter Bogdanovich, Paul Schrader ou Brian De Palma. Posto isto, convenhamos, que no mercado contemporâneo nenhum deles tem conseguido convencer os estúdios norte-americanos a providenciar-lhes financiamento necessário para filmar as suas obras. No caso de Scorsese tal condição forçou-o a virar-se para o universo das plataformas de streaming (em 2019, duas longas-metragens suas estrearam-se na Netflix) no de Bogdanovich conduziu-o a uma reforma antecipada e enquanto Schrader encontrou uma segunda vida num cinema experimentalista feito com poucos meios, De Palma exilou-se no continente europeu. Exemplo disso mesmo “Domino: A Hora da Vingança”, coprodução entre a Dinamarca, França, Itália, Bélgica e Holanda, que vem jogar dominó com a perturbadora liturgia do terrorismo e a espetacularização mediática do sofrimento.
Estamos em 2020, num futuro demasiado próximo da nossa realidade, onde Christian (Nikolaj Coster-Waldau), um polícia de Copenhaga, procura uma maneira de vingar o sanguinolento homicídio do parceiro Lars (Søren Malling), cometido por um indivíduo que aparenta pertencer a uma qualquer célula do Estado Islâmico. Para tal, aliando-se a Alex (Carice van Houten), colega e amante do falecido, que encontra uma componente redentora nessa jornada de ódio, que os colocará num pequeno périplo pela Europa, de terrenos belgas a praças espanholas. No entanto, a situação é bem mais ilusória do que o duo pensa. Acontece que, o criminoso não é um jihadista, mas sim um antigo membro das forças especiais da Líbia, que abandonou o seu país para perseguir o líder da célula que lhe matou o pai e planeia uma série de atentados no Velho Continente. Os três motivados por instintos mais ou menos primitivos, contudo, o tecido ténue que os une tornar-se-á ainda mais instável com a chegada de um pragmático agente da CIA (Guy Pearce), que reconhece no terceiro um potencial recurso para explorar, de modo a concretizar os seus objetivos na luta contra o terrorismo.
Reencontramos, portanto, o De Palma que nunca ocultou o seu prazer em encenar jogos de espelhos, onde as aparências estão condenadas a colidir com as nuances sempre complexas da realidade, e os heróis voluntária ou involuntariamente são catapultados para intrigas insuspeitas pelas circunstâncias em que se encontram. Temáticas enraizadas nos ricos cânones de uma certa série B, que De Palma não tem medo de convocar, providenciando um espírito profundamente classicista a um contundente exercício de suspense, que nos cativa também pela sua paradoxalidade. Ou seja, pela maneira como o veterano autor reúne elementos essenciais de um cinema que Hollywood renegou aos recantos mais independentes da produção cinematográfica (nomeadamente, uma tradição de thriller que encarava a psicologia como uma componente fundamental), no processo, fazendo deles lembranças antiquadas e alheias a quaisquer modas atuais, para contar uma história visceralmente conectada aos nossos tempos. “Domino: A Hora da Vingança” e os seus económicos 89 minutos, correspondem, portanto, a um acontecimento raro, que vem emprestar alguma seriedade à suposta silly season. Afinal, mais importante do que saber quem mandou matar, quem matou ou o motivo que possa explicar o homicídio é entender (ou questionar) o fascínio do fetiche imagético do terrorismo. Isto é, algures entre os mecanismos do policial e à busca pela dramaturgia do medo, Brian De Palma continua a traçar um percurso apenas seu.
Texto de Miguel Anjos
Realização: Brian De Palma
Argumento: Petter Skavlan
Elenco: Nikolaj Coster-Waldau, Carice Van Houten, Guy Pearce, Eriq Ebouaney, Søren Malling
Género: Thriller
Duração: 89 minutos
País: Dinamarca | França | Itália | Bélgica | Holanda
Distribuição: NOS Audiovisuais
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