"Dragged Across Concrete" ("Na Sombra da Lei"), de S. Craig Zahler
Em 1969, Sam Peckinpah (1925–1984) estreou “The Wild Bunch”. Um conto sanguinolento acerca de um bando de velhos cowboys envolvidos nas convulsões da fronteira entre o México e os Estados Unidos, onde já não existiam heróis clássicos, mas sim homens errantes, cada vez mais inadaptados a um tempo que os tinha reduzido a meras lendas distantes, incapazes de desenhar uma linha clara entre o Bem e o Mal. Aquando do seu lançamento, Hollywood nem desconfiava da viabilidade do género que ainda era o modelo de produção mais rentável do momento: o western. No entanto, o mesmo começaria a falecer aí mesmo. Porquê? Pois bem, porque Peckinpah foi o primeiro a entender que a simplicidade reconfortante da aventura mitológica dos bons contra os maus era coisa do passado. Ou seja, regressar ao Velho Oeste implicaria mergulhar de cabeça numa história de violência dantesca, eternamente assombrada pelos fantasmas do colonialismo e da xenofobia. Passado quase meio século (o aniversário acontecerá na próxima quinta-feira, dia 18 de julho), o romancista tornado cineasta S. Craig Zahler, autor de “Bone Tomahawk” (2015) e “Brawl In Cell Block 99” (2017), providencia-nos uma espécie de equivalente contemporâneo ao célebre magnum opus de Peckinpah, que se questiona acerca da legitimidade (ou, falta dela) de “brincar” aos polícias e ladrões numa América dividida ao meio por tensões raciais e pressões financeiras. Afinal, como proclama Don Johnson, a certo ponto, “tudo é político” e nessa equação temos forçosamente de incluir o cinema.
Brett Ridgeman (Mel Gibson) e Anthony Lurassetti (Vince Vaughn) são um duo de polícias que ainda não entenderam que não se podem comportar como há 10 ou 20 anos atrás. Um dia, quando prendiam um traficante de droga em sua casa, o duo recorre aquilo que o Departamento da Polícia considera “excesso de força” (um pé assente no pescoço do criminoso que estava deitado no chão e algemado). Para piorar a situação, foram filmados por um vizinho com um telemóvel e as imagens converteram-se nas notícias de abertura dos múltiplos telejornais nacionais e, como o traficante era latino ainda acabaram por ser rotulados como “racistas”. Suspensos das suas funções por várias semanas e sem um ordenado que os auxilie na hora de pagar as contas, Brett e Tony vêem-se aprisionados a situações incomportáveis. Acontece que, o primeiro necessita urgentemente de tirar a mulher (Laurie Holden), uma ex-agente da polícia que sofre de esclerose múltipla, e a filha adolescente (Jordyn Ashley Olson), que é assediada diariamente, do bairro problemático onde moram, e o segundo encomendou um anel caríssimo para pedir a namorada em casamento. De forma a escapar à sua condição financeira, os dois acabam por aceitar utilizar um velho contacto feito no submundo do crime (Udo Kier), para desenhar um plano que lhes dará a recompensa que sentem merecer. A estratégia é simples, seguir um magnata do narcotráfico local e esperar pela situação correta para esvaziar os seus cofres. Só que os seus destinos vão convergir com o de um terceiro protagonista, Henry Johns (Tory Kittles), um pequeno delinquente saído da prisão que precisa tanto de dinheiro como eles.
Quem conhecer o trabalho de Zahler não estranhará a duração de 159 minutos, nem a tranquilidade com a qual o mesmo vai retratando o quotidiano de cada uma das suas personagens, possibilitando ao público que ganhe alguma familiaridade com as mesmas até uma segunda metade caótica e fatalista, onde não encontramos quaisquer sinais de positivismos idealistas ou piedades redentoras. Nas mãos de um cineasta menor, porventura, os resultados seriam bem diferentes, no entanto, Zahler é um meticuloso dramaturgo e encenador, capaz mesmo de oferecer uma densidade muito particular a cada interação, no processo, nunca abdicando do carácter irredutível das personalidades por si criadas e, por isso mesmo, do assinalável talento dos seus intérpretes (outra qualidade que coloca “Na Sombra da Lei” na linha de certos títulos de autores como Peckinpah, Don Siegel ou Robert Aldrich) e o laconismo dramático e a austeridade plúmbea que presidem à fita, encontram correspondência nas interpretações excelentes do trio composto por Gibson, Vaughn e Kittles.
Muitos encaram Zahler enquanto um suposto substituto para Quentin Tarantino (que afirma estar à beira da reforma) precisamente por esse interesse em conceber narrativas centradas em situações violentas, utilizando momentos aparentemente banais para construir um clima de tensão e, empregando uma extensa galeria de personagens de diferentes origens, para desenhar um retrato desencantado do panorama contemporâneo. Contudo, Zahler tem um cunho muito mais discreto, procurando sempre enquadrar os indivíduos que filma num estado de constante naturalismo. Desse modo, examinando a natureza humana e as suas falhas. À semelhança dos anteriores “Bone” e “Brawl”, também em “Na Sombra da Lei” o vemos a colocar os protagonistas em cenários deveras complexos que os obrigam a repensar os princípios éticos que os guiam. E, nesse pensamento, encontramos a chave que nos permitirá compreender toda a sua filmografia, Zahler é, acima de tudo, o cronista das almas errantes abandonadas pelo tempo e pela sociedade. Ridgeman, Lurassetti e Johns são alternadamente bons e maus, heróis e vilões, sendo a procura inatingível de satisfação espiritual o único elemento que permanece constante no seu comportamento. A vida nunca lhes poderá dar esse contentamento, portanto, cabe a Zahler fazê-lo, mesmo que só o consiga durante uns fugazes 159 minutos…
Texto de Miguel Anjos
Realização: S. Craig Zahler
Argumento: S. Craig Zahler
Elenco: Mel Gibson, Vince Vaughn, Tory Kittles, Michael Jai White, Jennifer Carpenter, Laurie Holden, Fred Melamed, Thomas Kretschmann, Don Johnson
Duração: 159 minutos
Género: Thriller
País: EUA
Distribuição: NOS Audiovisuais
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