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"Ad Astra", de James Gray


James Gray sempre procurou acompanhar as convulsões íntimas das comunidades imigrantes (sobretudo, de origem russa, como a família de Gray) em Nova Iorque e arredores, compondo retratos tocantes e contundentes que convocavam o espírito de um cinema americano que não volta nunca (pensamos em Martin Scorsese, Paul Schrader ou Francis Ford Coppola, mas também em Mervyn LeRoy, Josef von Sternberg e Fritz Lang). No entanto, “A Cidade Perdida de Z” (2017) já evidenciava uma vontade de abandonar paisagens contemporâneas para encenar contos que mimetizassem a existência de Gray, cineasta que trocava o seu “lar” pelo desconforto de um universo estranho, por puro voluntarismo, quando nada o obrigava a fazê-lo.

O mesmo sucede novamente em “Ad Astra”. Conto hipnótico de um astronauta (Brad Pitt) aprisionado a uma solidão autoimposta, que necessita de embarcar numa expedição rumo ao desconhecido que é, afinal, uma viagem ao interior de si mesmo. Estamos num período temporal, que uma legenda inicial descreve apenas como “um futuro próximo, onde a esperança e o conflito existem em simultâneo”, quando uma sobrecarga de energia desencadeia um sem número de catástrofes das quais resultam muitos falecimentos. A NASA acredita que os mesmos podem estar relacionados com o extinto Projeto Lima, uma expedição pensada para comprovar a existência de vida alienígena, que desapareceu com todos os seus tripulantes a bordo.

Acontece que, o pai de McBride (Tommy Lee Jones) era o líder dessa expedição e Roy é o único que pode contactá-lo caso ainda esteja vivo. Dito assim, “Ad Astra”, talvez, possa parecer um thriller espacial mais ou menos típico, mas o filme de Gray é tudo menos isso, assumindo-se como uma aventura até aos recantos mais obscuros da mente humana, aos seus desejos íntimos mais reprimidos. Posto isto, à semelhança de todos os restantes filmes do cineasta é também uma história dos fantasmas que mantemos no quotidiano, que nos assombram para onde quer que vamos e olham constantemente nos olhos, mesmo que não passem de projeções das nossas inseguranças.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Ad Astra”
Realização: James Gray
Argumento: James Gray, Ethan Gross
Elenco: Brad Pitt, Tommy Lee Jones, Ruth Negga, Donald Sutherland, Liv Tyler

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