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"Dor e Glória", de Pedro Almodovár


O que é o cinema? O que pode ser o cinema? Pois bem, no limite, apetece-nos dizer o mesmo providencia a um realizador a hipótese radical de manter uma conversa puramente sensorial com o público, utilizando as cores, os sons, as texturas, os diálogos e os silêncios para comunicar algo a alguém que, de outra maneira, poderia nunca ouvir a mensagem ou desabafo em causa. Em “Dor e Glória”, Pedro Almodovár oferece-nos um presente tremendo. A oportunidade de o acompanharmos à medida que se vai tentando aperceber de quem é na voragem incessante do tempo. Escusado será dizer, que não haverá nenhuma outra busca tão universal como essa. Afinal, a certo ponto, todos nos questionamos acerca da nossa identidade e do peso que as nossas vivências passadas e expectativas futuras exercem sobre ela. No entanto, aquilo que nos comove mais no magnum opus do cineasta espanhol, é a sua candura. Há muito mais dor (nas costas, na garganta, no coração, na alma…) que glória no seu filme. Porquê? Pois bem, porque o objetivo não é fazer um inventário dos velhos sucessos do protagonista, obviamente modelado à imagem de Almodovár, mas sim entrar na conturbada mente de um homem envelhecido que ainda não conseguiu ultrapassar nenhum dos seus traumas passados. 



Esse homem é Salvador Mallo (Antonio Banderas), possuidor de uma extensa e aclamada carreira internacional como realizador de cinema, que vive num regime de autoimposta reclusão, num opulento apartamento em Madrid. Certa manhã, reencontra Zulema (Cecilia Roth), uma amiga atriz, que o informa que a Cinemateca planeia celebrar o aniversário de um dos seus títulos mais célebres, “Sabor”, com a estreia de uma cópia recentemente restaurada. Acontecimento esse, que o levará a uma série de encontros e desencontros, coincidências e associações, que o evidenciam como um prisioneiro do passado, permanentemente assombrado por fantasmas que não consegue exorcizar, seja o de um volátil ator (Asier Etxeandia) com quem nunca teve uma relação pacífica ou o de uma história de amor que ficou por concluir. Assim, Almodovár vai pintando o seu fresco, sem pudores na hora de mostrar vulnerabilidade, nem preocupações de ordem cronológica. Nesta perspetiva, importa destacar que “Dor e Glória” é uma experiência que vem diluir fronteiras que tradicionalmente tendem a ser erguidas, no processo, abandonando convenções e preferindo existir num estranho e sedutor limbo, algures entre as memórias e os artifícios, o passado e o presente.



A certo ponto, na porção do filme equivalente à infância do protagonista, Salvador torna-se numa espécie de professor, que aceita ensinar um vizinho analfabeto a ler e escrever, entende-se porque Almodóvar também nos continua a ensinar a cada filme que faz. No predecessor de “Dor e Glória”, “Julieta” (2016) dizia-nos que às vezes a vida não continua, não porque o tempo deixe de passar, mas porque a mágoa pode ser dilacerante a ponto de nos impedir de seguir em frente, deixando-nos eternamente congelados num espaço simbólico, habitado apenas pelos nossos fantasmas. Em “Dor” a lição centra-se precisamente nesse “tempo”, que passa sem nos dar hipótese de agarrar momentos e fechar ciclos. É uma mensagem contundente e tocante, que Almodóvar comunica numa mise en scène tipicamente exuberante, ancorada no trabalho admirável do diretor de fotografia José Luis Alcaine (veja-se aquele espantoso plano médio sob fundo vermelho que cristaliza a silhueta de Asier Etxeandia em pleno monólogo) e na composição de invulgares nuances emocionais de Antonio Banderas, que personifica Salvador Mallo como um morto-vivo descrente em si mesmo, que parece desaparecer lentamente e em surdina, nesse ontem que não acaba nunca.


Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Dolor y Gloria”
Realização: Pedro Almodóvar
Argumento: Pedro Almodóvar
Elenco: Antonio Banderas, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Nora Navas, Julieta Serrano, Penélope Cruz

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