"Parasitas", de Bong Joon-ho
De acordo com o dicionário de inglês de Oxford, existem duas definições possíveis para o termo “Parasitas". A primeira e mais tradicional, digamos assim, é a seguinte: organismos que vivem dentro ou fora de um organismo de uma espécie distinta (o seu portador ou caso queiramos desenhar paralelos com outro filme de Bong Joon-ho, o seu "hóspede"), de quem beneficia derivando nutrientes à sua custa. A segunda, no entanto, afasta-se do reino dos insetos e maleitas e adquire uma conotação bem mais derrogatória: pessoas que habitualmente exploram outras, sem nunca lhes oferecerem nada em troca pelos ganhos que lhe providenciaram.
Na sétima longa-metragem do sul-coreano Bong Joon-ho (autor de títulos como “Expresso do Amanhã” e “Okja”) ambos os significados se aplicam aos acontecimentos ilustrados na narrativa. Contudo, à medida que o filme se aproxima do seu clímax, o público é deixado com uma dúvida: Quem é o parasita e quem é o seu portador? Pode numa sociedade capitalista moderna existir um sistema em que os benefícios de um podem ser-lhe atribuídos, sem que sejam subtraídos a outro? Para um cineasta normal, uma pergunta assim tão complexa talvez fosse suficiente para preencher uma obra inteira, porém, para Bong é apenas um dos muitos temas que o seu mais recente magnum opus se propõe a analisar num misto de géneros tão amedrontador como esfuziante.
No início, somos introduzidos a uma situação mais ou menos comum. Nomeadamente, o quotidiano de duas famílias. Os excessivamente ricos Park e um paupérrimo quarteto, desprovido de apelido como se até esse fosse um benefício que as suas economias limitadas ou inexistentes não conseguissem suportar. Enquanto espetadores, somos tentados imediatamente a sentir empatia para com este clã de desempregados que procuram uma maneira de subir na vida, e olhar os Park com um certo desdém, tendo em conta que lhes é possível viver num ambiente de tamanho luxo, enquanto os outros necessitam de coabitar “encaixotados” numa cave um tanto ou quanto claustrofóbica, situada algures num bairro social da Coreia do Sul.
São as reações comuns a determinados cenários e Joon-ho sabe muito bem disso, pedindo-nos mesmo que cedamos aos nossos instintos mais primários e olhemos com empatia e paixão o clã de underdogs, enquanto reviramos os olhos perante a comodidade obscena dos Park. Talvez, os nossos heróis subam na cadeia alimentar por via de meios menos éticos, no entanto, isso não nos interessa nada, porque estamos interligados às suas almas. As condições desumanas em que vivem fazem com que os queiramos ver a conquistar um final feliz mais que os Park, unicamente pela situação em que se encontram. Mas, a situação começa a alterar-se quando os papéis começam a convergir uns com os outros, e nos exigem que questionemos a culpa de ambas as partes naquela relação parasítica. Será possível que ambas as entidades se alimentem mutuamente até ambas colapsarem?
Evitando revelar quaisquer detalhes acerca das nuances que a narrativa vai adquirindo, digamos que Bong Joon-ho encena aqui um retrato contundente da sociedade moderna, que oscila entre os maneirismos charmosos da comédia de costumes e as mecânicas clássicas do thriller, subvertendo todas e quaisquer expectativas e apresentando uma obra extraordinariamente única que não se parece com nada que tenhamos visto antes. Claro está, que tudo o que aquilo que acompanhamos acontece num cenário propositadamen te metafórico, porém, perfeitamente crível, uma vez que o cineasta nunca abusa das componentes simbólicas. Aliás, “Parasite” pode mesmo ser lido como um regresso ao rigor e austeridade realistas das suas primeiras longas-metragens, sem nunca abdicar de uma certa desenvoltura contagiante que o seu trabalho tem vindo a exibir em anos recentes.
Aquando da passagem de “Parasite” pela edição de 2019 do Festival de Cannes, o autor mencionou-se preocupado. Dizia na conferência de imprensa que o filme se encontrava de tal maneira enredado nas especificidades da sociedade coreana que corria o risco de ser impercetível para estrangeiros. Acontece que, são exatamente esses elementos que fazem dele universal. Mesmo que Bong tenha a preocupação de abordar temáticas distintamente locais, como os eternos conflitos com os vizinhos nortenhos, este conto acerca das permanentes lutas entre classes sociais (uma temática transversal à sua filmografia) e as consequências das desigualdades na distribuição de riqueza, pode muito facilmente ser transposto para a realidade portuguesa (e quem diz portuguesa, diz espanhola, francesa, italiana, etc.). “Parasitas" é cinema hipnótico para pensar o mundo em que vivemos e a forma como o fazemos, e promete entrar na epiderme do espetador com a mesma eficácia que o seu título.
Texto de Miguel Anjos
Título Original: "Parasite"
Realização: Bong Joon-ho
Argumento: Bong Joon-ho, Jin Won Han
Elenco: Song Kang Ho, Lee Sun Kyun, Cho Yeo Jeong, Choi Wook Shik, Park So Dam
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