"Os Órfãos de Brooklyn", de Edward Norton
Há um velho cliché que nos informa de que os atores tendem a experimentar a realização para poderem providenciar a si mesmos, os papéis que mais ninguém lhes quer oferecer. Esse não será o caso de Edward Norton, que nunca pareceu ter problemas em encontrar personagens complexas em produções invulgares (lembremos, por exemplo, “Clube de Combate”, “América Proibida” ou “A Última Hora”) e passou as últimas duas décadas a tentar transformar o romance “Os Órfãos de Brooklyn”, do seu conterrâneo Jonathan Lethem (lançado em 1999), num filme (de David Lynch a Spike Lee, muitos já andaram perto de assumir as rédeas do projeto). Porquê a demora? Pois bem, a narrativa concebida pelo escritor nova-iorquino tem elementos que tendemos a associar a uma certa noção de cinema noir que Hollywood há muito deixou de querer produzir. Isto, sem mencionar as problemáticas orçamentais típicas que uma ambiciosa produção de época como esta tende a levantar… Felizmente, Norton lá conseguiu convencer a Warner a financiar este seu passion project, assumindo a função tríplice de protagonista, argumentista e realizador, numa adaptação livre que recua a ação para os anos 50 e não tem medo de introduzir ecos contemporâneos numa história que muito claramente ambiciona espelhar o presente de forma crítica.
Lionel (Norton) é uma alma bondosa, decente e solitária. O seu patrão, Frank Minna (Bruce Willis), tirou-o de um orfanato, juntamente com outros três jovens e treinou-os para serem alguém num mundo difícil: detetives privados. Um dia, uma enigmática reunião com uns clientes resulta no homicídio desse mentor e, ao contrário dos seus companheiros na agência, não vai descansar até descobrir todos os detalhes necessários acerca do caso que Minna se encontrava a investigar, incluindo os culpados pelo assassinato. Seguindo a lógica clássica deste estilo de aventuras detectivescas, segue-se um meticuloso e melancólico retrato de um homem solitário, que procura incessantemente as múltiplas peças de um puzzle complexo, que o vão guiar por entre uma série de situações e locais como os serões calorosos de um clube de jazz no Harlem ou uma reunião pública sobre planeamento urbano, circunstâncias, de alguma maneira, interligadas pela presença ameaçadora de Moses Randolph (interpretado por Alec Baldwin, a incorporar os trejeitos trumpianos, que tem trazido às suas participações no “Saturday Night Live”), inspirada em Robert Moses (1888-1981), personalidade responsável pelo desenvolvimento urbano em Nova Iorque.
O clima sociopolítico que Edward Norton recria em “Os Órfãos de Brooklyn” possui óbvios pontos de contacto com a América contemporânea (como previamente mencionado, ninguém necessita de mencionar o nome de Donald Trump para nos lembrarmos dele, sempre que Alec Baldwin entra em cena). No entanto, esses ecos não advêm do romance, mas sim do trabalho de Norton enquanto argumentista, que decidiu recuar a ação até aos anos 50, de maneira a cruzar a história de Lionel com a aniquilação dos bairros nova-iorquinos, habitados sobretudo pela classe trabalhadora afro-americana, em nome de interesses especulativos, automaticamente convocando a omnipresença da gentrificação e corrupção na sociedade atual. Essa dimensão temática providencia um outro valor a uma aventura detectivesca, profundamente enraizada nos cânones do noir (os que andam com saudades de chapéus impecáveis, boas gabardinas e narradores atormentados, têm aqui a hipótese de matar saudades desses elementos), que Edward Norton e o diretor de fotografia Dick Pope recuperam com imaculada paixão e nostalgia cinéfila, bem auxiliados por um elenco primoroso e um tema musical inusitadamente denso de Thom Yorke.
Texto de Miguel Anjos
Título Original: “Motherless Brooklyn”
Realização: Edward Norton
Argumento: Edward Norton
Elenco: Edward Norton, Bruce Willis, Gugu Mbatha-Raw, Alec Baldwin, Willem Dafoe
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