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"Luz da Minha Vida", de Casey Affleck



Em 2008, Joaquin Phoenix anunciou que ia abandonar a sua carreira enquanto ator para se dedicar exclusivamente à música. A indústria ficou perplexa com tão bizarra novidade. Afinal, Phoenix parecia estar a entrar nos melhores anos da sua carreira, tendo ganho um Óscar pelo seu desempenho em “Walk the Line” e conseguindo conjugar com facilidade papéis em pequenas produções independentes e as ocasionais incursões pelos lançamentos multimilionários dos grandes estúdios. Além disso, por mais genuínas que pudessem ser as suas intenções, não havia como ignorar o óbvio: o ator não possuía qualquer tipo de talento como o rapper. No entanto, Phoenix teve a última gargalhada, quando contou a David Letterman que o autoproclamado “ano perdido” tinha sido um truque, idealizado por Casey Affleck que acompanhou o cunhado enquanto o mesmo exibia os destrutivos comportamentos de alguém entre a reinvenção e a decadência. O resultado foi o documentário “I'm Still Here”, um olhar sobre essas peculiares peripécias que tornou os inocen tes que interagiram com Phoenix em atores de uma narrativa secreta. “Nunca tentei enganar ninguém. A ideia de uma brincadeira nunca me passou pela cabeça. É uma atuação sensacional. A performance da carreira dele.” Comentou Affleck, aquando da passagem dessa sua primeira longa-metragem pela 67ª edição do Fesival de Veneza.

Contudo, muitos ficaram genuinamente insultados com a proeza que os dois levaram a cabo, a ponto de lhes dificultar a carreira durante vários anos (foram muitos os cineastas que vocalizaram o receio de os contratar, reconhecendo neles “personalidades instáveis” que, a qualquer momento, podiam rejeitar a realidade e avançar para um novo projeto conceptual como “I'm Still Here”). Escusado será dizer, que ambos ultrapassaram esses momentos difíceis. Casey Affleck continua a estabelecer-se como um dos mais confiáveis e seletos atores contemporâneos e Joaquin Phoenix reinventa-se anualmente. Posto isto, a hipótese de reencontramos o primeiro atrás das câmaras continuava a ter o seu quê de impossibilidade. Como se fosse inimaginável que o autor de uma fita tão transgressiva e rocambolesca como “I'm Still Here” reunisse financiamento para uma segunda longa. Mas, possivelmente devido à intervenção de uma qualquer divindade, aconteceu mesmo e passados nove meses desde a estreia na 69º edição do Festival de Berlim (o suficiente para procriar, mas ao menos estreou), podemos finalmente descobrir “Luz da Minha Vida” nas salas nacionais e o mínimo que se pode dizer acerca dele, é que confirma Affleck como um realizador alheio a modas e/ou tendências, cujos trabalhos não podem ser arrumados nas gavetas do costume.



Desta vez, encontramo-lo a trabalhar uma narrativa convencional (no sentido em que todos os participantes estão conscientes da sua existência), enraizada num dos subgéneros que mais importância têm assumido no panorama contemporâneo: o filme pós-apocalíptico. No entanto, Affleck não tem interesse em espantar o espetador com efeitos visuais de encher o olho, nem em encenar sequências de ação frenéticas, preferindo ao invés trabalhar um intimismo confessional com o qual é relativamente raro deparar num título como este (em anos recentes, apenas “Ele vem à Noite” nos parece comparável à abordagem de “Luz da Minha Vida”). Assim, entramos num futuro distópico, onde um estranho vírus exterminou praticamente todas as mulheres da Terra. As causas nunca foram apuradas e as poucas sobreviventes enfrentaram a captura, violação ou morte. 9 anos depois, um homem (Casey Affleck) deambula pela floresta com a sua filha de 11 anos (Anna Pniowsky), sobrevivendo como podem no oeste dos EUA, à medida que procuram alimento no “mar de árvores” em que vivem, longe do perigo dos homens. De modo a não chamar a atenção sobre si, a menina tem os cabelos curtos, veste-se, age e apresenta-se como se fosse um rapaz e protege-la é a única preocupação do pai, que também lhe ensina ética e história, memória e moralidade, enquanto a vai lembrando do amor que a sua mãe (Elisabeth Moss) sentia por ela.

É então, que um encontro inesperado vem perturbar este delicado equilíbrio, ameaçando o refúgio que pai e filha criaram num mundo perigoso. Uma premissa que pode trazer à mente recordações nostálgicas de obras como “A Estrada” (outro conto de amor parental que tinha como pano de fundo um mundo devastado), “Os Filhos do Homem” (uma distopia pouco convencional, centrada na impossibilidade da procriação numa sociedade à beira da extinção) e até “Anticristo” (uma fábula bucólica e anárquica, que não só levantava o medo da eminência de um eventual genocídio de todo o sexo feminino, como possuía o seu quê de apocalipse), contudo, é mesmo nestas ocasiões que importa recordar que o cinema não é acerca da história que conta, mas sim da maneira como escolhe fazê-lo. Ora, ao contrário dos exemplos previamente citados, Affleck não tem interesse rigorosamente nenhum em explorar os elementos de terror inerentes a premissa (embora, não se coíba de os incorporar nas peripécias que o duo enfrenta), para si “Luz da Minha Vida” existirá como um “veículo”, digamos assim, para explorar questões que lhe serão mais pessoais. Nomeadamente, a fragilidade da sociedade civilizada que, a qualquer momento, poderá desabar (não é necessário ser nenhum estudioso para saber que, ao longo da história, os humanos sempre se depararam com situações mais ou menos perversas, que os convenceram a ceder aos seus impulsos mais animalescos), um processo regressivo que, argumenta “Luz da Minha Vida”, apenas pode ser impedido pela educação e moralidade, valores que “idealmente” seriam transmitidos pelos progenitores. Assim, os dois tornam-se numa vela acesa que não se deixa apagar no contexto desolado (sentimento muitíssimo bem ilustrado por uma cena que retrata uma biblioteca escolar abandonada) da paisagem americana. 



Com uma delicadeza notável e um sentido artesanal de construção dramática, Affleck medita sobre o amor de um pai que ainda está a aprender o seu papel, não se esquecendo, mesmo no interior de uma narrativa tão opressiva, de incluir detalhes que providenciam uma certa veracidade aos acontecimentos, como uma cena comovente e surpreendentemente realista em que o vemos a explicar desajeitadamente à filha que ela pode estar próxima da puberdade. Todos começamos a conhecer a estrutura narrativa das aventuras pós-apocalípticas, por isso, é tão revitalizante quando um realizador revela a inteligência e habilidade suficientes para subverter as suas fórmulas e ao incluir momentos aparente mente tão insignificantes como esse, aquilo que o cineasta e argumentista consegue é convencer o espetador da existência deste mundo alternativo e centrá-lo numa base que é completamente tangível: a paternidade e as suas vicissitudes. Um empreendimento que não resultaria de modo algum não fosse Affleck também um extraordinário interprete, capaz de compor uma personagem infinitamente complexa, que se vê colocada numa situação que amplifica as suas falhas e o força a encarar as suas limitações constantemente e, claro está, não tivesse a seu lado uma atriz capaz de contracenar com ele e acerca da estreante Anna Pniowsky, digamos apenas, que se revela como uma assombrosa presença e um contraponto perfeito para a melancolia recatada do seu companheiro de cena.

Suave e serenamente perturbante, “Luz da Minha Vida” é o caso raro de um filme que não demonstra qualquer tipo de receios na hora de desconstruir os elementos tipicamente clássicos do género, com uma atmosfera de permanente intensidade e uma banda-sonora gentilmente poética de Daniel Hart (que já tinha composto para um dos mais perfeitos diamantes da carreira de Affleck, “A História de um Fantasma”), é uma odisseia minimal (com requintados contornos de conto moral), que vai desembocar numa fábula à moda antiga que, aliás, encontrará a sua melhor expressão nos primeiros instantes, quando o pai conta uma história de adormecer improvisada à filha, demorando-se nos pormenores, que ela vai comentar com inteligência, envolvendo-nos no quadro muito íntimo da aventura metafórica de duas raposas, tendo como pano de fundo a narrativa bíblica da Arca de Noé, até se aproximar do ponto em que se torna óbvia que, na verdade, o seu conto esperançoso se refere as atribulações enfrentadas pela raça humana. Lançado timidamentee e sem o apoio de uma campanha promocional, “Luz da Minha Vida” reúne todas as componentes necessárias para se perfilar como o tipo de acontecimento que acaba sempre a passar ao lado do público nas bilheteiras, no entanto, quer-nos parecer que ainda vamos falar muito dele e dos seus ricos, uma vez que, na sua infinita subtileza e despretensão está aqui a confirmação de uma das vozes mais desconcertantes do corrente panorama norte-americano.


Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Light of my Life”
Realização: Casey Affleck
Argumento: Casey Affleck
Elenco: Casey Affleck, Anna Pniowsky, Elisabeth Moss

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