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"Tommaso", de Abel Ferrara


Quando falamos sobre autores nova-iorquinos, mencionamos sempre Martin Scorsese e nunca nos esquecemos de Woody Allen, no entanto, parece que o nome de Abel Ferrara fica invariavelmente de fora. Ele, que durante as primeiras duas décadas da sua carreira tão abundantemente filmou a cidade que o viu crescer. Contudo, o seu amago começou a ser corroído por um sentimento de desencanto, que atingiu o seu ponto máximo nos ataques do 11 de setembro de 2001. Depois disso, abandonou Nova Iorque e os Estados Unidos, para se refugiar em Roma. Esse foi também o momento em que Ferrara abraçou a condição do cineasta exilado e iniciou uma peculiar fase europeia, “saltitando” entre documentários pessoalíssimos (destaque para Piazza Vittorio, que acompanhava o quotidiano dos muitos moradores da sua rua), biografias (um filme deveras polémico centrado no “caso Strauss-Kahn” e um olhar sobre o último dia de vida de Pier Paolo Pasolini) e títulos mais experimentais, possuidores de uma certa vibração (narrativa, estética, espiritual, etc.) que é muito sua. Tommaso, a sua vigésima-quinta longa-metragem (a vigésima-sexta já se encontra em pós-produção), pode ser descrita como um inusitado cruzamento dessas três categorias.

Mas, assim sendo, o que é Tommaso? Pois bem, trata-se de um retrato do quotidiano de um cineasta americano (Willem Dafoe, amigo próximo e colaborador habitual de Ferrara), que abandonou Nova Iorque para encontrar um refúgio de si mesmo e dos seus vícios em Roma, onde vive com a sua mulher (Christina Chiriac) e a filha (Anna Ferrara). Ora, se essa breve sinopse se assemelha aos acontecimentos que marcaram a existência do autor é porque esse aparenta ser o objetivo. Afinal, segundo as palavras do próprio, após o lançamento de Linha de Separação, “a vida dos realizadores é sempre mais interessante que os seus filmes”. Entende-se, portanto, que tenha escolhido colher inspiração nas suas próprias experiências, ainda que Tommaso não possa ser caracterizado estritamente nem como um conto biográfico, nem como um documentário, sentimos uma contundente veracidade que advém da candura que Ferrara imprime aqui. Aliás, mesmo que Tommaso venha preencher um “buraco” na sua filmografia, aquilo que mais nos agrada nele é o sucesso com que mantém as componentes que mais nos fascinam no seu trabalho. Novamente, estamos perante uma história caótica e excessiva (filmada de forma caótica e excessiva) sobre gente apanhada entre a sua violência intrínseca e um desejo, porventura, utópico de redenção, tudo isto encenado com um sentido poético a meio caminho entre o belo e o grotesco e uma apreciação muito genuína pelo labor dos atores que dão vida a estas personagens que são também reflexos, em particular, o arrebatador Dafoe.

Texto de Miguel Anjos
Título Original: “Tommaso”
Realização: Abel Ferrara
Argumento: Abel Ferrara
Elenco: Willem Dafoe, Cristina Chiriac, Anna Ferrara

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