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"Um Homem Fiel", de Louis Garrel


O sucesso internacional de títulos como Amigos Improváveis ou Bem-Vindo ao Norte conseguiu aproximar públicos de múltiplas nacionalidades de uma cinematografia de riqueza incomensurável, que ainda hoje é associada a lugares comuns preconceituosos que não possuem qualquer fundo de verdade. Um deles, diz-nos que os franceses se especializam em encenar romances ligeiros, sentimentalistas e tendencialmente fúteis. Enfim, qualquer cinéfilo sentir-se-ia perfeitamente confortável ao enumerar uma vasta e conclusiva lista de exemplos que contrariam esse raciocínio, no entanto, fiquemo-nos por um único. Chama-se Um Homem Fiel, estreou-se esta semana em três salas de cinema portuguesas (UCI Él Corte Inglês, Cineplace Leiria Shopping e Algarveshopping), depois de passar um ano a saltitar no calendário português (o lançamento comercial tem sido adiado desde março) e é um dos mais belos acontecimentos de 2019.

Trata-se de uma desconcertante farsa, levemente ultrapassada pelas sombras de Truffaut e Hitchcock, que começa de modo simples e vai crescentemente adquirindo elementos de indescritível estranheza. Marianne (Laetitia Casta) abandona o jornalista Abel (Louis Garrel), por Paul (que nunca chegamos a conhecer), o melhor amigo deste, de quem engravidou recentemente. Oito anos mais tarde, Paul morre e Marianne volta para os braços de Abel. No entanto, essa nova situação amorosa vai mesmo desencadear ciúmes tanto no filho de Marianne, Joseph (Joseph Engel), como na irmã mais nova de Paul, Ève (Lily Rose-Depp), a qual, desde criança, tenta impedir que a paixão que sente por Abel venha à tona. Assim, o que aparentava ser um triângulo amoroso converte-se no quadrilátero e tudo passa a assumir contornos bem mais insidiosos, quando Joseph se vai insinuando nas relações dos adultos para as puder corroer…


Trata-se, portanto, de uma inusitada subversão dos códigos das habituais aventuras românticas (como evidenciado, por exemplo, pelo suposto triângulo amoroso que transforma num quadrilátero), que utiliza uma aparência de ligeireza para nos guiar por uma viagem romanesca pelos muitos enigmas dos desejos humanos (que se prendem maioritariamente com a impossibilidade de comunicar), que vai ziguezagueando entre um realismo que reconhecemos do nosso quotidiano, com um ambiente que se aproxima do surrealismo, uma ambiência que poderá lembrar o espetador mais cinéfilo de certos títulos de Luis Buñuel (1900-1983). Uma referência que faz todo o sentido convocar, não fosse o argu mento o fruto de uma colaboração entre Garrel e Jean-Claude Carrière, “escriba” de algumas das mais impressionantes obras do cineasta espanhol, incluindo O Anjo Exterminador e Belle de Jour.

Posto isto, se quisermos encontrar uma tradição cinematográfica onde possamos anexar Um Homem Fiel, então, necessitaríamos de convocar Eric Rohmer (1920-2010), cineasta que sempre procurou desconstruir as relações humanas e analisar com bisturi cada um dos elementos que as compõe. Em última instância, é precisamente isso que Garrel está a fazer aqui e, mesmo que os resultados não atinjam a contundência do predecessor, Os Dois Amigos, existe em Um Homem Fiel um certo requinte, que advém de um meticuloso trabalho de mise en scène aliado à qualidade das interpretações do quarteto central (aliás, as únicas personagens relevantes no filme), que não têm problemas em providenciar autenticidade e fluidez aos diálogos mordazes e deliciosamente perversos, que partem da banalidade do quotidiano, para adquirirem uma componente alegórica, apostada em desvendar os mistérios inexplicáveis que comandam os desejos dos corpos e almas e vão moldando as relações que mantemos com os outros.


Texto de Miguel Anjos

Título Original: "L'homme fidèle"
Realização: Louis Garrel
Argumento: Louis Garrel, Jean-Claude Carrière
Elenco: Louis Garrel, Laetitia Casta, Lily-Rose Depp, Joseph Engler

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