"Graças a Deus", de François Ozon
O contexto é tudo. Por vezes, esquecemo-nos dessa evidência, especialmente num mundo comandado por fake news, hot takes, sound bites e os muitos outros estrangeirismos que nos auxiliam a entender as convulsões do panorama contemporâneo. Por exemplo, quem não souber nada acerca de François Ozon (autor de títulos como Frantz, O Amante Duplo ou O Tempo que Resta e um dos mais prolíficos e consistentes cineastas vivos) e desta sua vigésima longa-metragem, talvez interprete o título Graças a Deus como sendo um apelo religioso, porventura, ligado a um daqueles filmes evangélicos que só nos querem mesmo convencer a ir à Igreja (pensemos em Deus não está Morto ou O Céu Existe Mesmo) e rejeitá-lo como tal (seria um erro). Os que souberem que se trata da evocação das ramificações das múltiplas vítimas de um padre gaulês que terá abusado de dezenas de escuteiros, pode ser levado a assumir que Ozon escolheu o nome da sua obra num gesto irónico com o seu quê de incendiário. Contudo, a verdade é bem mais desconcertante. Acontece que, a certo ponto, durante uma conferência de imprensa, o Cardeal Barbarin (o sempre confiável François Marthouret), reconhece a gravidade do comportamento do Padre Preynat (Bernard Verley), da maneira mais chocante possível. “Estamos perante factos que datam de há muito tempo e, graças a Deus, todos esses factos prescreveram.” É um momento violentíssimo que, por si só, encapsula aquela que pode muito bem ser a missiva de Ozon: discutir a impossibilidade de prescrever a verdade dos factos.
A história começa quando Alexandre Guérin (Melvil Poupaud, uma presença mais ou menos constante na filmografia de Ozon), adulto, católico e casado com cinco filhos, acaba por se cruzar com uma informação inesperada: Bernard Preynat, o padre que o abusou quando era escuteiro, continua a trabalhar com crianças. Essa novidade vai desencadear nele um doloroso processo de revisitação das suas memórias, que reabre feridas antigas que Guérin pensava já terem sarado, levando-o a mobilizar outros homens que, como ele, foram abusados por Preynat na infância e, mais do que isso, a gerar um amplo movimento social, intitulado “La Parole Libérée”. Isto é, “A Palavra Libertada”. Ora, assumindo esse ponto de partida, Ozon escolhe encenar essa batalha por justiça, não como um thriller investigativo à semelhança do tematicamente similar (e francamente mau) O Caso Spotlight, mas sim como um imenso mosaico de personagens e acontecimentos que se vão cruzando e impactando mutuamente, no processo, contribuindo para um resultado final que tem o seu quê de épico. Trata-se, afinal, de construir uma narrativa que, sem nunca sentir a necessidade de se reduzir à influência sedutora e maniqueísta dos discursos inflamados e gritos panfletários, consegue refletir acerca de uma problemática que permanece fundamental: como é que a Igreja e, importa lembrar, os fiéis lidam com situações que se desviam assim tanto dos seus valores?
Ozon, em vez de providenciar respostas simples, decide ainda problematizar mais a questão, interrogando-se acerca das razões que terão conduzido a Igreja e os seus seguidores à criação (intencional ou não) de um cultura de silencia repressiva e opressiva, que permanece até aos dias de hoje e se verifica não só na falta de sanções para muitos membros do clero que pouco ou nada devem à moralidade, mas também na maneira como muitos fiéis parecem encarar os apelos das vítimas como ataques sangrentos às suas próprias crenças, um sentimento belissimamente exemplificado pela forma como os pais de Alexandre reagem à sua necessidade de conseguir justiça. Resumindo de forma necessariamente esquemática, Graças a Deus não é um filme contra a Igreja, é um filme pela Igreja. Um olhar humanista que nem tem medo na hora de fazer perguntas desconfortáveis, nem sucumbe a nenhum tipo de logica maniqueísta, promovendo, isso sim, o valor radicalmente libertador de permitir às vítimas que verbalizem aquilo que aconteceu. Aliás, apetece mesmo seguir essa linha de pensamento, para dizer que Ozon, habitualmente um cineasta ligado aos gestos e ações, se dedica aqui a analisar o poder intrínseco das palavras, a sua importância, o seu peso e, como não poderia deixar de ser, as ramificações de as empregar ou não…
Texto de Miguel Anjos
Título Original: “Grâce à Dieu”
Realização: François Ozon
Argumento: François Ozon
Elenco: Melvil Poupaud, Denis Menóchet, Swann Arlaud, Éric Caravaca, Josiane Balasko
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