"Dark Waters: Verdade Envenenada", de Todd Haynes
Habituámo-nos a associar o cinema de Todd Haynes a um certo sentido de transgressão. Afinal, foi ele o ousado experimentalista que encenou o admirável “I'm Not There: Não Estou Aí”, que reunia um sexteto de atores diferentes para encarnar Bob Dylan, no processo, misturando factos e mitos, para conceber um filme mais interessado em aproximar-se do universo iconográfico do cantautor do que fazer um mero inventário dos momentos mais importantes da vida do mesmo. Por isso, muitos membros da imprensa americana (e não só) têm exprimido alguma estranheza, quando confrontados com um acontecimento tão militantemente antiquado como “Dark Waters: Verdade Envenenada”. Acontece que, ao transformar o artigo da The New York Times Magazine, intitulado “The Lawyer Who Became DuPont's Worst Nightmare” (da autoria de Nathaniel Rich), Haynes consegue bem mais do que um thriller extraordinariamente competente, “Verdade Envenenada” é mesmo um insólito conto moral, assombrado por preocupações ambientais (tão atuais nos dias que correm), que desde os tempos longínquos de “Seguro” (a sua segunda longa-metragem, assinada em 1995) fazem parte do seu cinema (Haynes não acordou agora para esses problemas, ao contrário de muita gente…).
Em causa, está o drama verídico de Robert Billot (Mark Ruffalo, também produtor), um advogado com muitos anos de experiência a defender grandes empresas químicas. Certo dia, um camponês (Bill Camp), conhecido da sua avó, entra no seu escritório com informações desconcertantes. 190 cabeças de gado faleceram em circunstâncias estranhíssimas que o mesmo pensa estarem relacionadas com a atividade de uma poderosa multinacional, a DuPont Corporation. Inicialmente, Billot pensa que o pobre homem, desesperado pela pressão financeira causada pelo desaparecimento do seu ganha pão, terá enlouquecido. No entanto, à medida que vai investigando a conduta da empresa, começa a perceber que a paranóia do seu novo cliente é inteiramente justificada… Esse é, portanto, o começo de uma batalha legal que se prolongará durante vários anos e que Haynes encena como um policial com componentes de terror. Por um lado, seguimos a investigação desta personagem que vai dedicar cada segundo da sua existência a este caso que ninguém tem coragem de agarrar. Por outro, vamos sentindo o peso do poder do dinheiro, que vai obstruindo e destruindo o caminho e a vida de todos os que tentam denunciar a crueldade das suas práticas.
Aliás, o elemento mais singular de “Dark Waters” talvez seja mesmo a maneira como o filme vai desenvolvendo um sentimento de permanente de desconforto, que se intensifica a cada ano que passa (e diga-se que Haynes consegue mesmo fazer-nos sentir o peso do tempo), o que evidencia algumas das melhores qualidades de um cineasta tão incomum como ele, trocando os clichés convencionais do filme de tribunal para dar ênfase ao longo e extenuante processo em que Billot embarca, sem sequer suspeitar inicialmente das vicissitudes que irá enfrentar. Sendo também notório o retrato que é feito desse protagonista, um herói extraordinariamente subtil, que não encaixa nos modelos que tipicamente tendem a ocupar uma posição central em narrativas deste tipo. O que acaba por providenciar uma angústia muito particular a “Dark Waters”, além de assistirmos ao combate deste homem contra um sistema corrupto, estamos perante a saga intima de quem começa lentamente a entender que o universo a que sempre pertenceu se encontra enraízado numa imoralidade incomportável, no fundo, é a sua consciência que o convence a continuar esta luta, mesmo quando a mesma se reflete numa degradação física progressiva. Fundamental neste processo, é o desempenho de Mark Ruffalo, a demonstrar uma comovente contenção, da expressão corporal ao tom de voz. Num filme repleto de estupendos atores (Tim Robbins, Anne Hathaway ou Victor Garber são alguns dos outros), é ele quem mais se destaca.
Texto de Miguel Anjos
Título Original: “Dark Waters”
Realização: Todd Haynes
Argumento: Todd Haynes
Elenco: Mark Ruffalo, Anne Hathaway, Tim Robbins, Bill Camp, Victor Garber, Bill Pullman
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