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"The Grudge: Maldição", de Nicholas Pesce


Na opinião dos produtores americanos a melhor fórmula de assustar o público pertence sempre aos outros. Sempre que um filme de terror com um conceito inovador consegue conquistar o coração dos espetadores, seguem-se centenas de imitadores que ambicionam capitalizar nesse sucesso. No entanto, essas modas tendem a desaparecer tão rápido como surgem. Scream deu origem a uma geração de terror autorreflexivo. The Blair Witch Project convenceu os estúdios que as plateias preferiam que os seus pesadelos fossem apresentados em modo found footage e Saw pavimentou o caminho para um subgénero que viríamos a conhecer como torture porn. A imitação talvez seja a forma mais sincera de elogiar alguém, mas também soa bem melhor quando se tenta persuadir os investidores a abrirem os cordões à bolsa…O mais curioso desses fenómenos foi o breve interesse que o cinema japonês despertou no coração do mercado americano. Afinal, os 250 milhões de dólares que a Paramount arrecadou, quando Gore Verbinski reinventou o lúgubre Ringu, de Hideo Nakata, não passaram ao lado de ninguém, pelo contrário, foi nesse momento que a concorrência concluiu que o segredo para o êxito se encontrava nos contos de fantasmas nipónicos, que se tornaram campeões de bilheteira no final do século XX.

O problema é que nenhum outro remake conseguiu replicar o fenómeno criado em torno de The Ring e, consequentemente, essa tendência fílmica entrou em declínio. Porquê? Pois bem, porque quem comprou os direitos de títulos como Chakushin Ari ou Kairo obviamente não os entendeu. Isto é, em vez de nascerem da vontade singular de um criador que queria providenciar uma leitura só sua de uma história pré-existente, esses remakes provinham da necessidade coletiva de rentabilizar uma marca pré-estabelecida. Quando essa é a prioridade, concebem-se coisas como One Missed Call ou Pulse, meros inventários de tiques revivalistas, que promoviam um formalismo copioso, sem qualquer projeto ideológico ou estético que os amparasse. Pensávamos que o tempo do chamado J Horror tinha ficado no passado, mas essa conclusão pecou pela antecipação, como evidenciado pelo lançamento de The Grudge, onze anos depois do terceiro capítulo da franquia ter sido silenciosamente circunscrito ao mercado de homevideo. O resultado é uma inteligente e arrepiante reinvenção de um conceito engenhoso, que devolve vitalidade ao universo narrativo pensado por Takashi Shimizu, sem nunca se esquecer de incorporar o elemento mais característico desse terror de inspiração japonesa: o seu pessimismo quase niilista.


Para quem não souber ou não se lembrar, o conceito de The Grudge baseia-se numa crença antiga, segundo a qual, uma morte violenta contem uma certa ira, que se manifestará na evocação de espíritos vingativos. Nicholas Pesce (também argumentista) começa logo por tomar uma decisão pouco convencional: descartar a estrutura linear deste estilo de contos, para apresentar múltiplos eventos aparentemente desconexos, que lentamente vão unindo, um pouco como acontecia nos antigos portmanteau films da Amicus ou, mais recentemente, nos oito episódios da previamente mencionada saga Saw. Há uma viúva (Andrea Riseborough), que procura uma maneira de reconstruir a sua vida noutro lugar. Um detetive (Demian Bichir), cujo parceiro foi consumido por uma loucura fulminante, depois de visitar uma casa, onde ocorreu um assassinato grotesco. Um vendedor imobiliário (John Cho), cuja esposa (Betty Gilpin) acaba de receber más notícias relacionadas com a sua gravidez e ainda um homem (Frankie Faison) que necessita de encontrar alguém que o auxilie a eutanasiar a mulher senil (Lin Shaye). A infelicidade das suas circunstâncias une-os e vulnerabiliza-os a uma maldição que devora o desespero das presas e se espalha como uma doença infeciosa (pensemos numa epidemia zombie, mas em vez de distribuir o desejo de consumir carne humana, intensifica os sentimentos mais negativos, que cada um encerra em si).

Veterano dos recantos mais independentes do cinema americano contemporâneo, Pesce, sempre se contentou com a reputação de um minimalista, capaz de encenar encontros inusitados entre personagens que tendem a pautar-se por comportamentos pouco corriqueiros, por isso, talvez surpreenda os seus seguidores saber que a sua primeira incursão por territórios do sobrenatural mantém um realismo facilmente reconhecível do princípio ao fim. Como assim? Bom, digamos que Pesce ambiciona mostrar-nos o mundo como ele é e não como gostávamos que fosse. As casas estão envelhecidas, a tinta nas paredes já está perto de desaparecer, os carros estão riscados, as personagens vestem-se com roupas possivelmente demasiado largas e caminham com olheiras, cabelo despenteado e sem maquilhagem. Ao não embelezar nenhuma componente do seu filme, o realizador consegue fazer-nos acreditar que este universo é o nosso e, portanto, quando a miséria humana se cruza com o sobrenatural ficamos muito mais chocados. Afinal, o alvo destes fantasmas rancorosos não são estrelas de cinema, mas pessoas de carne e osso com os mesmos problemas que nós. Também, por isso, é tão importante o interesse que Pesce evidencia na hora de desenhar personagens complexas, cujas interações exponham os contrastes e contradições da condição humana.



Fulcral nessa dinâmica é o labor dos atores, aqui muitíssimo bem representado por um extenso elenco que vai dividindo o protagonismo. John Cho e Betty Gilpin são comoventes na forma eminentemente subtil como exprimem o sofrimento daquele casal, sem nunca cair no histrionismo (ela, em particular, nunca antes teve a oportunidade de apresentar uma composição assim tão contida), Riseborough encarna o cansaço progressivo e desesperado da sua detetive com uma energia que lembra o Al Pacino de Dog Day Afternoon e Bichir é um king of cool, providenciando complexidade inesperada a uma personagem que começa logo com o seu quê de subversão, mas quem “rouba” o filme é o trio composto por Lin Shaye, William Faison e Jackie Weaver, que trazem emoção a uma narrativa extraordinariamente pesada e triste. Aliás, apetece dizer que o segundo tem um monólogo que só muito dificilmente deixará olhos secos na sala. Todos eles, belissimamente captadas pela fotografia de Zack Galler, ora a brincar com luzes e sombras, ora a tirar proveito do contraste entre um castanho carbonizado e um cinzento metalizado, e acompanhados por uma banda sonora de levantar cada pêlo no braço do espetador dos The Newton Brothers, cujas credenciais no mundo do terror vêm de uma longa e frutífera colaboração com Mike Flanagan.

Depois de nos convidar a entrar na intimidade de uma serial killer solitária (Os Olhos da Minha Mãe) e a assistir às sanguinolentas e estrambólicas interações de uma prostituta de luxo com um aspirante a psicopata (Piercing), Pesce convoca-nos agora a entrar numa realidade espectral, onde não há salvação, nem antes, nem depois da morte, pintando um cenário desencantado e desolado, que concluiu que o mundo dos vivos é tão mau como o dos mortos que se recusam a abandonar-nos. Logo, essa suposta maldição colérica e raivosa não é mais que o resultado convencional de uma existência marcada por agruras terríveis, seja o marido da Detetive Muldoon que faleceu de cancro ou a muito amada mulher de William, que nenhum demónio impedirá ou salvará de se perder nos intermináveis labirintos da senilidade. Dizia Eugene Thacker que, “não basta sermos indiferentes ao mundo, como ele ainda se diverte a torturar-nos” e é bem possível que Pesce concorde. Claro está, não é uma ideia reconfortante e The Grudge é mesmo um dos exemplares mais desolados do terror contemporâneo (é dizer muito em tempo de Hereditário, Midsommar ou The Lodge), mas assim vai o cinema de Pesce. Aterrorizador como só mesmo a vida consegue ser e, enquanto nos presentear momentos como aquele final abrupto, brutal e silencioso, apetece-nos saudar o seu caráter e esperar que assim continue por muitos e longos anos.


Texto de Miguel Anjos

Título Original: “The Grudge”
Realização: Nicholas Pesce
Argumento: Nicholas Pesce
Elenco: Andrea Riseborough, Demian Bichir, John Cho, Betty Gilpin, Lin Shaye, Frankie Faison, Jackie Weaver

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