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"Uma Vida Escondida", de Terrence Malick


Durante os primeiros 40 anos da sua carreira, Terrence Malick assinou apenas quatro longas-metragens, o que lhe providenciou uma certa reputação que cedo o aproximou do estatuto de lenda. Afinal, para muitos espetadores e críticos o autor de obras-primas como “Os Noivos Sangrentos” ou “Dias de Paraíso” era claramente um dos mais fascinantes cineastas em atividade, o que apenas tornava a escassez da sua produção ainda mais frustrante. Contudo, isso veio a mudar quando em 2011, estreou em Cannes (e conquistou a Palma de Ouro) com “A Árvore da Vida”, uma épica tapeçaria de acontecimentos que acompanhava o nascimento do universo, tendo como centro o crescimento de um jovem texano, modelado a partir do próprio Malick. À altura não sabíamos, mas esse seria o princípio de uma nova fase para Malick, que viria a ser composto por filmes que abraçavam como nunca antes o seu amor pelo cinema como uma experiência oniricamente elíptica, que nunca se vergava as amarras de uma estrutura narrativa convencional.

“Uma Vida Escondida”, a sua nona longa-metragem, parece vir dar início a um terceiro ato para o realizador, desta feita, mais dedicado do que nunca um tema que sempre lhe fora muito querido. Nomeadamente, a relação do homem com a sua crença no sagrado (que fique registado que Malick já terminou as rodagens do seu próximo título, que de momento tem o título provisório “The Last Planet” e se focará num conjunto de episódios da vida de Jesus Cristo). Para tal, o mesmo convoca a figura verídica de Franz Jägerstätter, um camponês e objetor de consciência alemão, que foi condenado à morte por se recusar a prestar fidelidade a Adolf Hitler, que encarava abertamente como sendo a encarnação humana do Mal. E, importa mesmo, sublinhar esse último facto, para ele é impensável pegar numa arma e utilizá-la contra outros seres humanas, mas, acima de tudo, aquilo que o impede de assumir qualquer tipo de ligação é o ritual a que teria de se submeter, onde seria forçado a jurar que manteria uma relação de lealdade com uma figura, cujas práticas são inteiramente opostas aos princípios do camponês.


Escusado será dizer que, tal como ocorria nos seus filmes anteriores, qualquer sinopse corre o risco de passar ao lado da pulsação sensorial que sempre marcou o seu trabalho. Desde logo, porque ele continua a insistir em incluir os elementos naturais como expressão íntima da experiência humana (a fotografia do alemão Jörg Widmer é francamente notável) e depois porque a montagem quase musical de “Uma Vida Escondida” desafia todas as normas de indexação dramática de passado e presente. A ele pouco ou nada lhe interessa contar uma história de forma linear e escorreita, porque para si o cinema não é, nem pode ser um mero exercício de unir pontos, antes pelo contrário, ver um filme como este é entrar dentro de uma experiência que nos engole por completo. Tal como Franz sentimos o amor daquela esposa, a rejeição da comunidade, a frescura daquelas ervas e até a graça divina que parece contemplar o seu rosto, quando olha pela janela.

Isto, juntamente com um elenco de primeira água, ajuda Malick a conceber um tributo altamente tocante à moralidade e decência, que não tem medo na hora de questionar as consequências da fé. Afinal, como explica um pintor ao protagonista a certo ponto no filme, a herança de Cristo é extraordinariamente pesada e aceitá-la implica também estar disposto a acarretar atribulações incomportáveis e, em última instância, é isso que separa os que bajulam do que os que seguem. E, quem pensar, como muita critica americana tem sugerido, que Malick se inspirou na ascensão de novos fascismos, claramente não sabe da sua paixão por temáticas intemporais (o filme começou a ser produzido em 2017), que sejam tão relevantes hoje como daqui a 500 anos. “Uma Vida Escondida” nos seus enigmas indecifráveis e beleza incandescente é mesmo isso, um apelo à decência que se encerra no interior de cada um, mesmo quando a alternativa do ódio é insistentemente mais sedutora e fácil de abraçar.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: "A Hidden Life"
Realização: Terrence Malick
Argumento: Terrence Malick
Elenco: August Diehl, Valerie Pachner, Maria Simon, Karin Neuhäuser

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