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 "Tenet", de Christopher Nolan


Conseguirá “Tenet” salvar as salas de cinema? Desde o princípio da pandemia que o público se deixou consumir por um pavor lovecraftiano que apela ao histerismo e à clausura. O resultado, escusado será dizer, foi tudo menos positivo para o setor da cultura. E, se noutros países como França ou Espanha, já começamos a ver prenúncios muito concretos de um eventual futuro para os cinemas, em Portugal a situação continua negríssima. Enfim, Christopher Nolan certamente nunca se olvidou dos santuários à cinefilia, mantendo-se sempre completamente avesso a qualquer lançamento digital. Ainda é cedo demais para saber se vai ou não ser compensado pelas discussões sanguinolentas que os rumores indicam que necessitou de ter com os executivos da Warner, mas uma coisa certa, os espetadores mundiais não podiam ter pedido um motivo melhor para se mobilizarem em direção ao grande ecrã do que este.

Como também acontecia com outros títulos do seu autor como “A Origem” ou “Interstellar”, é importante manter um certo nível de secretismo. Portanto, digamos apenas que nos encontramos no território do thriller de espionagem. Nele, vamos conhecer O Protagonista (John David Washington), um agente de tal modo comprometido ao seu trabalho que se deixa recrutar por uma organização que o envia para o mundo com um único palíndromo: Tenet. Esse termo vai “abrir as portas corretas e algumas das erradas”. Durante a sua missão cruza-se com enigmáticos aliados (interpretados por pessoas como Robert Pattinson, Himesh Patel e Michael Caine) e um antagonista implacável (Kenneth Branagh, com um acentuado sotaque russo, que consegue a proeza de nunca cair na caricatura).


Sem sequer possuir consciência disso mesmo, O Protagonista envolve-se numa teia de acontecimentos que vão alterar a sua perceção da realidade, que começa quando entende que é possível viajar (para trás e para à frente) no tempo, construído diálogos permanentes entre os dois tempos através dos mais inusitados movimentos. Se parece complicado é porque é mesmo e não há dúvidas que "Tenet" beneficiará de visionamentos repetidos, até porque apenas compreendemos a narrativa no seu todo nos últimos minutos, depois de termos acompanhado O Protagonista na sua odisseia. Inevitavelmente, alguns vão abandonar a sala de cinema confusos, mas ninguém ficará indiferente perante a natureza labiríntica deste épico contemporâneo.

A certo ponto, uma das personagens secundárias diz ao Protagonista que não tente entender o que se passa e se limite a experienciá-lo. Ora, obviamente esta mensagem tanto é para ele, como para nós. Afinal, Nolan insere-se numa linhagem de cineastas que começa mesmo em Georges Méliès (1861-1938), o cinema é, acima de tudo, uma experiência, por mais atrativos e importantes que sejam os outros méritos que uma obra pode e deve tentar alcançar, o objetivo é sempre o de mexer com o espetador a um nível sensorial, de certo modo, envolvendo o próprio público no turbilhão de interações que o mesmo testemunha no ecrã à sua frente. Daí também a importância da sala escura como espécie de santuário insubstituível das imagens em movimento, onde o som envolvente e a imagem gigantesca nos engolem vivos.


No entanto, por mais impressionantes que sejam os efeitos visuais (e são mesmo de encher o olho), o trabalho do cineasta britânico continua a dedicar uma atenção permanente aos atores. Nesse departamento, é imperativo começar por elogiar Elizabeth Debicki que é encarregada de desempenhar o papel mais humano, ela que tanta vez é mal utilizada por realizadores que a encaram unicamente como uma femme fatale. Aqui vemo-la a explicitar até as mais delicadas nuances do comportamento humano, naquele que é muito claramente um dos momentos altos da sua carreira. Entre “Tenet” e “A Cor da Ambição”, Debicki parece ser das poucas pessoas que poderá argumentar que 2020 não foi assim tão mau. Já a Washington e Pattinson é pedido que alterem radicalmente a maneira como se aproximam de uma personagem, adotando uma subtileza incomum e abandonando o charme característico de ambos, mesmo que volta e meia ele lá venha a superfície. Eles são cifras num ambiente de paranóia, onde existe sempre a sensação de que alguém, algures sabe mais do que nós.

Nesse sentido, podemos compará-lo às intrigas de espiões clássicas, que o próprio Nolan assume como influências, incluindo as películas da franquia James Bond e, no entanto, esse parentesco fica por aí, porque mesmo os melhores exemplares dessa tradição não podiam sequer sonhar com a ambição desmesurada de “Tenet”, um palíndromo reflexivo sobre a mortalidade que é também um suculento naco de entretenimento pipoqueiro. Se terá ou não a mesma influência disruptiva que “Memento” ou “A Origem” tiveram na produção hollywoodesca (e não só) que se seguiu não podemos prever ainda, mas que aqui temos alguns dos momentos mais surpreendentes dos últimos anos não há dúvidas. Das sequências de ação em que os combatentes se encontram em fluxos temporais distintos a um final que podia ter saído de “Aconteceu no Oeste”, sem esquecer uma sufocante perseguição que é coisa para deixar qualquer um de boca aberta. “Tenet” é o primeiro clássico da ficção-científica desta nova década.

Texto de Miguel Anjos

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