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"Farming", de Adewale Akinnuoye-Agbaje


Infelizmente, o fascismo está de volta. Enfim, na verdade, ele nunca desapareceu, nós é que nos permitimos cair na ilusão de pensar o contrário. Nesse sentido, o realismo britânico assume uma importância ainda maior do que já tinha. Afinal, se há crítica que não podemos levantar contra o país que nos deu cineastas como Ken Loach, Shane Meadows ou Andrea Arnold, é ter medo de nos mostrar em que mundo vivemos. Agora, Adewale Akinnuoye-Agbaje, que conhecíamos apenas como ator de títulos tão variados como “Esquadrão Suicida” e “Trumbo” (só para mencionar alguns dos mais recentes), realiza a sua primeira experiência atrás das camaras com uma autobiografia acutilante. Chama-se “Farming” e o título refere-se a uma prática popularizada entre as décadas de 60 e 80, numa Inglaterra em recessão, dezenas de milhares de crianças nigerianas foram entregues a famílias de acolhimento brancas por pais (imigrantes, negros e pobres) que tentavam estudar e fazer dinheiro com o objetivo de regressarem à Nigéria. Entre essas crianças encontramos Enitan, que sonha em ser branco de modo a evitar a troça de quem o rodeia (a certo ponto, vemo-lo a cobrir a cara de pó de talco para se assemelhar às restantes crianças da vizinhança), contudo, esse ódio pela sua própria raça apenas o leva a aproximar-se de um grupo de skinheads que parece controlar a zona e que, reconhecendo os seus talentos para a violência física, o recrutam como “um animal de estimação” que obviamente se encontra disposto a tudo por esses companheiros que o abandonam sem pensar duas vezes sempre que necessário. O tema é pertinente e, como seria de esperar, um filme que se predispõe a tocar em assuntos assim tão sérios não poderia ser de visionamento fácil, mas Akinnuoye-Agbaje espanta, demonstrando-se capaz de criar um épico do quotidiano, imbuído (ocasionalmente, apetece mesmo dizer possuído) por um espirito selvagem que nos desafia a viajar até ao inferno que se oculta nos recintos mais obscuros da mente humana. O resultado é um retrato cru e acutilante de uma realidade que continua a existir como se comprova pelos muitos e horrificantes momentos de crueldade que reconhecemos como atuais.

Texto de Miguel Anjos

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