Avançar para o conteúdo principal
"Mulheres ao Poder", de Philippa Lowthorpe


Além de expor chocantes abusos de poder, o movimento #MeToo desencadeou um debate acerca da representação da mulher na ficção. Para muitos (membros da comunidade conhecida como Hollywood ou meros espetadores) as narrativas contemporâneas tinham (e continuam a ter) a tendência de secundarizar as personagens femininas, reduzindo-as a papéis que se limitavam a apoiar os seus homólogos masculinos. O resultado dessa conversa foi mesmo um aumento de histórias sobre mulheres que têm contribuído para um panorama mais igualitário. No entanto, esse movimento também veio realçar um óbvio paradoxo. Isto é, como é possível que a mesma sociedade que requer uma perspetiva mais feminina no mundo do cinema, também se deleite com concursos de beleza que tratam as suas concorrentes como pedaços de carne? “Mulheres ao Poder”, da realizadora britânica Philippa Lowthorpe, convida-nos a pensar sobre isso mesmo, convocando um momento crucial da história desses campeonatos. Estávamos na Grã-Bretanha, em 1970, que apanhou manifestantes feministas londrinas imiscuídas na plateia do Royal Albert Hall, numa edição que acabou por conferir a primeira vitória a uma mulher negra, Jennifer Hosten, a representar a Granada.

De maneira a conseguir providenciar-nos uma perspetiva mais abrangente, Lowthorpe resolveu compor uma narrativa coral, alternando entre os pontos de vista de uma extensa galeria de personagens, oferecendo especial destaque a Keira Knightley e Jessie Buckley na frente do movimento de emancipação feminina e, do outro lado da barricada, Gugu Mbatha-Raw, a encarnar a concorrente triunfante que, de certa maneira, baralha o discurso das primeiras ao propor um raciocínio alternativo: “conseguem elas sequer imaginar a importância que uma coroação assim tem para as meninas de cor de todo o mundo?” O conflito interno de “Mulheres ao Poder” reside nesse contraste entre quem, batalhando contra os padrões machistas da sociedade patriarcal, encaravam o concurso como um exemplo da objetificação da mulher, e as duas concorrentes negras (além da previamente mencionada Hosten, havia uma representante da África do Sul ainda durante o Apartheid) que ali encontravam uma plataforma para mostrar a outras jovens que os seus sonhos se poderiam concretizar. Essa dicotomia faz de “Mulheres ao Poder” um filme muito mais rico que o esperado, revelando-se capaz de traçar uma radiografia daquela sociedade, com um sentido de humor desarmante e uma realização ágil, que resulta mesmo num charmoso documento histórico dotado de uma leveza incomum e, claro está, que quando se conta com atores como Knightley, Buckley, Mbatha-Raw, Rhys Ifans ou Greg Kinnear nunca há motivos para criticar as atuações.

Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)