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"Mãe Só Há Uma", de Anna Muylaert


A produção brasileira está longe de se esgotar nas matrizes formatadas das telenovelas. Contudo, o mercado português nunca demonstrou muito interesse em providenciar-nos exemplos dessa diversidade. Obviamente existem exceções. Todos conhecemos fenómenos como “Cidade de Deus” ou “Tropa de Elite”, mas o cinema carioca não pode ser circunscrito aos retratos do quotidiano nas favelas. Nesse sentido, é imperativo prestar atenção ao ciclo que a Nitrato Filmes dedicará a realizadoras brasileiras em outubro. O mesmo teve início na passada semana e foi inaugurado pelo lançamento de “Mãe Só Há Uma”, segunda longa-metragem de Anna Muylaert que, aliás, já conhecíamos do muito curioso “Que Horas Ela Volta?”, onde se evidenciava capaz de apresentar um olhar contundente sobre as desigualdades sociais na sociedade contemporânea. Nele, se conta a história de Pierre (Naomi Nero), um adolescente de 17 anos, avesso a estereótipos de género, que descobre que a mulher que o criou o roubou à mãe biológica. Uma revelação que o força a mudar de nome e domicílio, acabando num condomínio privado, com uma família conservadora que representa os antípodas das pessoas com quem cresceu. Um pouco à semelhança do recente “Patrick” (embora existem diferenças notórias), Muylaert nunca nos deixa escapar à perspetiva do protagonista, encerrando o espetador na mesma espiral de acontecimentos emocionalmente arrasadores que o vão consumindo. Nesse processo, este conto sobre a natureza do amor e do ódio com todas as contradições que os acompanham, beneficia imenso de uma realização à flor da pele sempre colada à energia do elenco, em especial, do protagonista Naomi Nero, cujo charme é mais do que suficiente para segurar estes impressionantes e inevitavelmente curtos 82 minutos.

Texto de Miguel Anjos

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