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"A Felicidade das Pequenas Coisas", de Daniele Luchetti


Daniele Luchetti, autor de "O Meu Irmão é Filho Único" e "A Nossa Vida", é todo um especialista num realismo suave, contaminado por uma melancolia quotidiana que todos reconheceremos como nossa. Quer o tom lhe vá mais para o drama ou para a comédia, os resultados costumam pautar-se pela mesma consistência. Em "A Felicidade das Pequenas Coisas", encontramo-lo a adaptar dois textos de Francesco Piccolo (um dos mais populares escritores italianos contemporâneos), que remetem para uma variedade de referências cinematográficas (de "O Céu Pode Esperar" a "Casa de Vida ou Morte"). Nele, conhecemos Paolo (interpretado por Pif, alcunha do polivalente Pierfrancesco Diliberto), "um homem vulgar adorável", como é descrito a certo ponto, que começa por nos chamar a atenção pelas suas peculiares questões acerca dos elementos mais absurdos do quotidiano, e por hábitos pouco dados ao bom-senso. Entre os quais, a sua predileção por passar o sinal vermelho num cruzamento por onde passa diariamente, mesmo naquela fração de segundo em que a cor muda e ninguém se mexe em qualquer direção. Certo dia, tem azar, é colhido por um camião e recambiado para uma espécie de Loja do Cidadão celeste, onde se vai aperceber de que houve um erro que o levou a falecer antes do previsto. De modo a repor o balanço, as chefias dão-lhe 92 minutos extra junto dos vivos. O que se segue é uma astuta e tocante reinvenção da comédia de situação, colocando Paolo numa odisseia exterior e interior, à medida que reavalia as suas vivências (do pouco tempo que dedicou aos filhos aos seus muitos casos extraconjugais). Reforçando a sua proximidade à tradição clássica da commedia all’italiana, a meio caminho entre Nanni Moretti (Paolo tem mesmo o seu quê de Michele Apicella, o velho alter ego do realizador de "Querido Diário") e Ettore Scola, Luchetti cria um retrato humano incomum e caleidoscópico, com uma enorme capacidade de observação e um sentido de humor desarmante. É o último grande filme de um ano que teimava em não acabar.

Texto de Miguel Anjos

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