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CRÍTICA - "BELFAST"

Evocando títulos incontornáveis da cinematografia britânica do século XX, como "Esperança e Glória" ou "Aqueles Longos Dias", Kenneth Branagh, realizador das honrosas adaptações para o grande ecrã de "Henrique V" e "Hamlet", encena as as suas próprias memórias de infância, enquanto o filho mais novo de uma família protestante a viver num bairro social maioritariamente católico de Belfast, na Irlanda do Norte, em 1969, mesmo no início dos confrontos entre estas duas fações.

O seu alter ego é Buddy (Jude Hill), um irrequieto rapazinho de nove anos, que leva uma vida simples, lendo bandas-desenhadas (a certo ponto, damos com ele a folhear um comic de Thor, o Deus do Trovão a quem Branagh deu espessura cinematográfica em 2011), visitando as salas de cinema locais (à semelhança do recente "A Mão de Deus", de Paolo Sorrentino, "Belfast" é também, subtilmente, um relato de iniciação às maravilhas da Sétima Arte), brincando com os amigos nas ruas e delineando planos para conquistar o coração de uma colega de turma.

Tudo parece simples e sereno, até ao momento em que eclodem os chamados Troubles, o sanguinolento conflito que colocou muitos contra os seus vizinhos e, tragicamente, se prolongou durante uns longos 30 anos, deixando feridas que ainda não cicatrizaram e gerando rancores que continuam a assombrar muitas almas. Não admira, portanto, que esse momento (e as suas ramificações várias) continuem a ser alvo de muitas e variadas revisitações (não só no cinema, como também na televisão e literatura), mas, surpreendentemente (pela positiva a nosso ver), o que interessa a Branagh nem é dissecar um capítulo traumático da sua vida (e da existência da sua pátria), mas sim exaltar o caráter humano dos envolvidos.

Afinal, se a história se encarrega de imortalizar os eventos, cabe ao cinema recordar as memórias individuais das pessoas que são engolidas pela voragem do tempo. Neste filme exemplar, Branagh faz exatamente isso, secundarizando a componente política da história, para compor um melodrama familiar francamente comovente, que providencia um rosto e uma voz a quem se viu enredado numa orgia de brutalidade desprovida de sentido.

Assim, compreende-se (e aprecia-se) o cuidado que é tido no desenho das personagens. À semelhança daquilo que costuma acontecer no bom cinema, "Belfast" trabalha arduamente para nos convencer que as suas personagens são mesmo gente de carne e osso, concedendo aos acontecimentos relatados um elemento de autenticidade que importa não subestimar e, obviamente, oferecendo aos atores "materiais" mais que muito dignos aos atores, e se, é mesmo o pequeno Jude Hill que rouba as atenções, com uma performance que mete no chinelo as de muitos veteranos que por aí andam, seria um erro não reconhecer o trabalho exímio de quem o acompanha, de Judi Dench e Ciarán Hinds que, como os avós do menino, impressionam ao misturarem leveza e melancolia, ao mais que muito competente par composto por Caitriona Balfe e Jamie Dornan, cuja dilaceração desencadeada pela situação quase bélica que lhes é imposta nunca deixa de ser credível e tocante.

No entanto, nem só dos horrores do mundo se faz a narrativa de "Belfast", dado que uma das características mais apelativas do argumento é até a sua apetência para encontrar algum tipo de leveza no sucedido, nem que seja só porque tudo nos é comunicado pelo olhar de uma criança que, por motivos óbvios, não entende inteiramente o que raio está a acontecer à volta, dando mesmo azo a vários momentos de inesperada comicidade, que nunca permitem ao tom que se afunde inexoravelmente na tristeza.

Essa capacidade de encontrar alguma graciosidade em tamanho horror, talvez evidencie até alguma maturidade de Branagh que, claramente, terá colocado muito de si neste projeto e não foi mesmo em vão. Ao encenar uma odisseia íntima, com ressonâncias contemporâneas tristemente atuais (não é notícia para ninguém que o périplo dos refugiados continua a ser um tema do momento) a meio-caminho entre a doçura e a amargura, que nos arranca várias lágrimas dos olhos sem necessitar de cair em sentimentalismos manipuladores, ele conseguiu fazer o seu melhor filme e uma das mais apetecíveis propostas em cartaz momentaneamente.

Além disso, sejamos sinceros, qualquer filme que tenha o bom gosto de usar e abusar de Van Morrison (um conterrâneo de Branagh) como "Belfast" o faz, merece a nossa total simpatia.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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