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Crítica - "X"

Ti West cimentou a sua reputação enquanto um dos mais promissores cineastas internacionais no campo do cinema de terror, graças a um trio de extraordinários filmes ("The House of the Devil", "Hóspedes Indesejados" e "The Sacrament"). No entanto, mesmo quando nos parecia que ele ia conseguir sair dos recantos mais independentes da produção norte-americana, West praticamente desapareceu. Aliás, excetuando o western "Terra Violenta" (2016), o realizador não assinou uma única longa-metragem nos últimos dez anos, o que levou muitos a suspeitar que talvez houvesse algum problema. Teria o mundo perdido uma das suas vozes mais auspiciosas?

Sucintamente? Não. Parece que, West se encontrava apenas a planear um regresso apropriadamente bombástico ao terror, que se dá agora com o lançamento de "X", um cruzamento francamente delirante entre "Massacre no Texas" (1974), "Boogie Nights" (1997) e "Amor" (2012), com a chancela da A24, quiçá, a mais consistente (e consistentemente fascinante) das produtoras norte-americanas contemporâneas. Nele, rumamos até aos tempos tumultuosos de 1979, quando um sexteto de jovens com problemas financeiros, concluem que o boom do cinema porno se aproxima e, como tal, o melhor é aproveitarem e tirarem partido dele, antes que outros tenham a mesma ideia.

Então, o produtor e financiador Wayne Scott (Martin Henderson, a meio-caminho entre o charmoso e o seboso, claramente a emular certas personagens de Matthew McConaughey), arrenda uma quinta numa zona remota do Texas a um casal de nonagenários. Não querendo adiantar demasiados detalhes, digamos apenas que as coisas não correm exatamente como antecipado... À semelhança do que acontece noutros títulos de West, "X" começa num registo que combina drama e comédia, estabelecendo a personalidade dos envolvidos e auxiliando-nos a entender concretamente o que é que os move, de modo a que, quando a narrativa adquira contornos mais sanguinolentos, nos seja impossível ser indiferentes aos seus destinos (potencialmente trágicos), contudo, a sombra do terror paira sobre todos os acontecimentos, em especial, devido a um banda-sonora nada convencional, que dilui qualquer conforto que os momentos mais leves nos possam providenciar.

Ora, qualquer pessoa que já tenha visto alguns filmes de terror (e bastam mesmo alguns) conhecerá essa estrutura bipartida, segundo a qual a primeira metade do filme serve primariamente para preparar os eventos da segunda (e, convenhamos, o cinema de West nem sequer é totalmente imune a essa prática), mas "X" começa logo por surpreender ao abandonar essa fórmula. Aqui, a inquietação está presente desde muito cedo e a eventual sanguinolência não é mais do que uma materialização das ansiedades que são levantadas anteriormente (da mesma maneira que, por exemplo, a brutalidade que concluía "Anticristo", de Lars Von Trier, era somente a consubstanciação física da dilaceração espiritual do casal protagonista). Nesse sentido, importa não nos enganarmos, "X" é um filme de ideias, onde o que assusta verdadeiramente não é uma qualquer força maligna, mas sim, a consciência de que os males que assombram os personagens (sejam os heróis ou os vilões) também pairam sobre os nossos corpos diariamente.

Mantendo o secretismo necessário, encontramo-nos perante uma acutilante reflexão sobre a nossa relação com a sexualidade e as consequências nefastas do envelhecimento, que é também um olhar desencantado sobre uma sociedade política, religiosa e moralmente dividida em grupos que podem nunca encontrar terreno comum, por isso, entende-se que West não se coíba de reconhecer a importância de "Massacre no Texas", de Tobe Hooper, na conceção estética, narrativa e temática de "X". Afinal, o que era esse filme, senão uma elegia pelo movimento hippie, onde se encenava o confronto (ou, simbolicamente, a consciencialização) de um grupo de jovens progressivos com uma nação que continuava fiel ao valores primitivos e violentos? Eles tinham avançado, deixando para trás os tempos selvagens do Velho Oeste, mas nem todos tinham conseguido (ou sequer almejavam conseguir) o mesmo.

No entanto, "X" é tudo menos uma regurgitação de temas previamente trabalhados em clássicos intemporais (coisa que, convenhamos, abunda na paisagem contemporânea). É um vigoroso naco de entretenimento, pleno de suspense, brutalidade e humor, assente no trabalho meticuloso de um elenco invulgarmente talentoso, de onde é inevitável destacar Mia Goth, aqui a surpreender com um papel duplo. Uma coisa parece certa, tão depressa, não deparamos com um filme que, de uma só assentada, seja assim tão perturbador e divertido.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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