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CRÍTICA - "DRIVE MY CAR"


Em 2015, Ryusuke Hamaguchi apresentou "Happy Hour" no Festival de Locarno. À data, o cineasta nipónico não era ainda um nome reconhecível, nem mesmo dos segmentos mais cinéfilos do público, no entanto, isso não lhe retirou a coragem de assinar um filme que se prolongava durante 5h17, onde éramos convidados a acompanhar o quotidiano de quatro mulheres na casa dos 30 anos. A crítica reagiu com euforia (houve mesmo quem avançasse que Hamaguchi podia vir a tornar-se no John Cassavetes do Japão), colocando "Happy Hour" nas bocas do mundo e permitindo-lhe que conquistasse acordos de distribuição um pouco por todo o mundo. Passados 7 anos, Hamaguchi é hoje uma das maiores coqueluches do cinema contemporâneo e a prova disso é o estatuto de quase "blockbuster" (para o contexto da produção cinematográfica autoral em 2022, claro está) que "Drive My Car" conquistou e, que fique dito, o filme faz inteiramente jus ao muito hype que temos ouvido desde a sua passagem pela passada edição do Festival de Cannes.

Nele, conhecemos Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um ator e encenador, que nunca recuperou do falecimento súbito da sua mulher Oto (Reika Kirishima), com quem mantinha uma relação tumultuosa, assombrada pelo espectro de uma filha que morrera prematuramente. Certo dia, é convidado por um Festival de Teatro, em Hiroshima, para encenar "O Tio Vânia", de Anton Tchekhov (1860-1904). Lá chegado, a direção do certame diz-lhe que, por razões contratuais e de segurança, ele não pode guiar o seu próprio carro, sendo-lhe designada uma condutora, a jovem Misaki (Tôko Miura). Yusuke fica aborrecidíssimo porque costuma aproveitar as horas de condução para ensaiar as peças, ouvindo-as em cassetes que a mulher gravava e receia que Misaki arruíne esse ritual, além de lhe parecer que uma rapariga tão jovem não conseguirá conduzir corretamente o seu SaabTurbo900.


Fosse "Drive My Car" um melodrama convencional e esse talvez fosse o principio de um relacionamento amoroso entre Yusuke e Misaki, mas Hamaguchi marimba-se para as expectativas do público e encena um melodrama paciente e infinitamente empático, onde o que importa são os sentimentos mais profundos das personagens e a maneira como estas escolhem revelá-los e/ou ocultá-los. Hamaguchi é, afinal, um cineasta da palavra, compondo diálogos eloquentes e longos, muito longos, que permitem sempre aos seus "heróis" e "heroínas" que exponham algo de muito íntimo, mesmo que nem sempre se encontrem conscientes de o estarem a fazer.

Aliás, ao trabalhar o conto "Homens Sem Mulheres", de Haruki Murakami (um autor de quem os realizadores japoneses gostam particularmente há que dizê-lo) e estendê-lo (as más línguas diriam "inflacioná-lo") para umas volumosas 3 horas, Hamaguchi terá conseguido um genuíno épico do intimismo. Uma experiência fascinantemente subtil, que é muito mais que uma mera soma de acontecimentos, mas sim, uma verdadeira tapeçaria de interações contundentes e acutilantes que, na sua infinita melancolia, nos tocam profundamente com o seu pendor universal. Cá para nós, "Drive My Car" parece-nos ser um filme ao qual voltaremos incessantemente, nem que seja só para constatar que a resolução dos seus mistérios (como dos da condição humana), permanece eternamente fora do nosso alcance.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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