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CRÍTICA - "THE BATMAN"

Quando pensamos no património do cinema de super-heróis, conseguimos quase instantaneamente lembrarmo-nos de um punhado de títulos que transcendem os pergaminhos habituais do género (de que, aviso à navegação, desfrutamos sem preconceitos, nem sentimentos de culpa, mas sem o fascínio que muitos parecem possuir)... e não é que muitos deles envolvem o icónico Batman? Quer falemos do existencialismo grandiloquente de Christopher Nolan, do grotesco delirante de Tim Burton ou do distanciamento irónico de Chris McKay, a verdade é que o homem morcego já nos deu belíssimos momentos de cinema.

No entanto, também já protagonizou alguns falhanços francamente embaraçosos, como foi o caso de "Batman & Robin", "The Killing Joke" ou "Liga da Justiça". Nesse sentido e, com a reforma antecipada do Batman de Ben Affleck encontrando-se praticamente confirmada, chegou o momento da Warner Bros reinventar novamente a personagem e, a avaliar pelo falatório permanente que se tem registado nos últimos meses, apetece dizer que conseguiram, pelo menos, penetrar o chamado zeitgeist, devido a uma campanha de marketing francamente notável.

Contudo, escusado será dizer, que nenhum filme se faz valer pela qualidade (ou falta dela) da sua campanha publicitária, mas, neste caso, a epicidade dos trailers não mentiu. De facto, Matt Reeves, realizador de excelentes títulos como "Nome de Código: Cloverfield" ou "Deixa-me Entrar", cumpriu a sua promessa de nos entregar um Batman diferente de todos os outros e concebeu um filme que se assume como um cruzamento de muitas e fascinantemente diversas sensibilidades, de "Chinatown" a "Saw", com uns pozinhos de Denis Villeneuve e Bruno Dumont pelo meio.

Estamos em Gotham City. Bruce Wayne (Robert Pattinson) não só permanece incapaz de ultrapassar o assassinato dos seus pais, como deixa que esse acontecimento traumático molde o seu passado, presente e futuro, convencendo-o a suprimir qualquer tipo de tentativa de cultivar uma vida normal e dedicando toda a sua atenção ao seu trabalho enquanto Batman, o justiceiro soturno e lacónico que, na volta, já se apoderou da sua identidade por inteiro (a certo ponto, há mesmo uma personagem que sugere que Bruce Wayne se tornou no seu alter ego e não o contrário).

Certo dia, Edward Nashton (Paul Dano) um serial killer com consciência social e um gosto muito particular por adivinhas, que lhe rendeu a alcunha de The Riddler, começa a assassinar figuras proeminentes da cidade, depois de expor as suas práticas corruptas ao público, desencadeando um reinado de terror na metrópole do Homem Morcego. Acontece que, Edward sente uma certa afinidade para com o justiceiro, levando-o a deixar sempre alguma mensagem codificada para ele nas suas cenas do crime, em simultâneo, provocando-o e mantendo um diálogo "amigável" com um individuo que o psicopata se recusa a encarar como um "némesis".

À semelhança do que acontecia no prodigioso "Joker", de Todd Phillips, Reeves mantém muitas das componentes que associamos ao protagonista, contudo, surpreende-nos pela maneira como lhes providencia um novo enquadramento, abandonando a rotina dos super-heróis contemporâneos e aproximando-se da velha tradição do noir norte-americano e  (um pouco como Guillermo Del Toro o fez recentemente em "Nightmare Alley - Beco das Almas Perdidas"). Assim, o filme é menos um espetáculo de ação (embora, existam alguns memoráveis combates corpo a corpo e uma perseguição de primeiríssima água) e mais uma odisseia intima, na medida em que o nosso herói vai ser lançado numa via sacra em que as suas certezas civilizacionais acabam por se confrontar com a vulnerabilidade dos seus fundamentos.

Em "The Batman", Bruce Wayne reencontra, portanto, uma turbulência emocional que lhe confere a dimensão clássica de um genuíno herói trágico.  Afinal, importa lembrar que até os universos mais fantasiosos (e, convenhamos, que "The Batman" ainda é mais "realista" que qualquer aventura de James Bond ou Jason Bourne) nascem de uma tentativa de refletir os nossos próprios dilemas existenciais. Do clássico paralelismo entre Gotham City e Nova Iorque até ao desencanto face às atribulações do mundo da política, este mundo não é mais que uma ligeira perversão do nosso, onde ecoam com perversa ambiguidade, sentimentos e ânsias do nosso presente.

Definitivamente adulto no seu modo de estar e representar, Robert Pattinson compõe um Batman tão sedutor quanto indecifrável. Além do mais, mantendo uma bela química dramática com a também excelente Zöe Kravitz. No entanto, o elenco inclui muitos outros intérpretes em "estado de graça", como o supracitado Paul Dano, John Turturro, Andy Serkis ou o irreconhecível Colin Farrell (a HBO Max já se encontra mesmo a desenvolver uma série exclusivamente dedicada à sua personagem), ainda que a vontade de não incorrer em spoilers não nos permita falar muito sobre as suas performances e o contributo para a história. Todos eles, devidamente acompanhados pelas prodigiosas composições musicais de Michael Giacchino, um especialista de filmes de animação, tendo mesmo conquistado um Óscar pela banda-sonora que compôs para "UP - Altamente", que aqui se reinventa com uma verdadeira sinfonia, exemplarmente adequada à saga deste vingador humano assombrado por fantasmas e ilusões de todos os tipos.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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