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CRÍTICA - "SALGUEIRO MAIA - O IMPLICADO"


Durante muito tempo, circulou uma ideia generalizada de que o cinema português não sabia como lidar com a história do país (ou, simplesmente não tinha interesse em fazê-lo). É bastante discutível que tal afirmação possuísse qualquer tipo de veracidade, mas, seja como for, os últimos anos parecem ter conseguido calar essas vozes. Porquê? Pois bem, devido ao surgimento de títulos como "Cartas da Guerra", "Soldado Milhões", "Ruth""Snu" ou "A Herdade".

Quer gostemos mais ou menos dos filmes supracitados, todos eles representam claras tentativas de estabelecer um diálogo entre o passado e o presente, expondo aos portugueses de hoje o que era o Portugal de ontem, tendo como contexto momentos ou personagens emblemáticos da nossa história coletiva, retratados com recurso às mais diversas abordagens. "Salgueiro Maia - O Implicado", de Sérgio Graciano, insere-se firme e coerentemente nessa linha artística e intelectual, propondo-se a celebrar o Capitão de Abril que conquistou um lugar quase mitológico na consciência histórica dos portugueses.


Graciano, entre "Assim Assim", "Njinga, Rainha de Angola" ou "Linhas de Sangue", mencionando apenas um punhado de títulos, já fez um pouco de tudo, mas nunca o vimos tão inspirado como em "Salgueiro Maia - O Implicado", conjugando o thriller político com o melodrama de recorte clássico com eloquência, alternando sistematicamente entre o passado e o presente da personagem titular, de modo a pintar um retrato do homem por detrás da lenda, para tal, estabelecendo uma atmosfera de tensão permanente, muito bem pontuado por apontamentos cómicos surpreendentemente frequentes e sempre certeiros, que trazem outra humanidade e verossimilhança as interações entre personagens.

Para o sucesso deste empreendimento, muito contribui o trabalho de um elenco uniformemente excelente, liderado por um Tomás Alves soberbo, aqui a apresentar uma composição de invulgares nuances emocionais. Vemo-lo em praticamente todas as cenas, desde que emerge das sombras para motivar os seus companheiros de armas na primeira cena e Alves nunca desilude, encontrando sempre algo de genuinamente humano numa personagem que a história nos condicionou a encarar como sendo "maior que a vida", no entanto, não há como subestimar o contributo fundamental de Frederico Barata e Filipa Areosa, ambos exímios como as pessoas mais próximas do Capitão.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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