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CRÍTICA - "TUDO EM TODO O LADO AO MESMO TEMPO"

Em 2016, Daniel Kwan e Daniel Scheinert apareceram no prestigiado Festival de Sundance com "Swiss Army Man", uma comédia melancólica que combinava existencialismo e flatulência, onde éramos convidados a acompanhar a odisseia de um homem com tendências suicidas que, no pior momento da sua vida, estabelecia uma inusitada relação de amizade com um cadáver com gases particularmente potentes e uma ereção que podia ser utilizada como uma bússola. Em Portugal, como em muitos outros mercados, "Swiss Army Man" foi relegado aos videoclubes das nossas operadoras, sem ter direito a passar por uma sala de cinema, mas, nem isso o impediu de encontrar um dedicado culto de fãs, que reconhecem nos Daniels (o nome que a dupla utiliza para assinar as suas obras) autores capazes de criar objetos de cinema absolutamente únicos, onde tudo é possível. Resumindo de forma necessariamente esquemática, quem anda por aí a dizer que "original só o pecado", certamente nunca viu um filme desta dupla.

Entende-se, portanto, o burburinho que "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo", a segunda longa-metragem do duo, depois de Scheinert ter assinado "The Death of Dick Long" a solo, tem gerado desde a sua passagem no Festival South by Southwest, onde conquistou rasgados elogios do público e crítica que não se coibiram de o apontar como um clássico imediato. Exagero? De modo nenhum, não só porque os Daniels evidenciam novamente ser possuidores de uma imaginação galopante, que consegue sempre surpreender, mas porque "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" está longe de resumir a um acumular de momentos bizarros, existe aqui uma genuína vontade de contar uma história sobre a experiência humana na qual todos nos possamos reconhecer. Nele, conhecemos a senhora Wang (Michelle Yeoh), uma emigrante chinesa na América, dona e gerente de uma lavandaria a contas com uma crise conjugal e aflita para compreender a sua jovem filha, Joy (Stephanie Hsu), cujo objetivo é confessar a sua homossexualidade ao avô (James Hong). Tudo desaba quando é confrontada com uma versão do marido (Ke Huy Quan) vinda de uma outra dimensão temporal. De repetente, vê-se num universo onde tem de lutar contra uma versão maléfica (e niilista) da filha através de uma série de vidas que não viveu, desde estrela de filmes de artes marciais a sinaleira publicitária.

Segue-se um amontoar de momentos rocambolescos, intercalados por referências cinematográficas extraordinariamente ecléticas, no contexto de uma narrativa que combina elementos de melodrama familiar com indagação existencialista. Se sempre sonhou ver um filme que referisse "Ratatui" e "Disponível para Amar" e ainda arranjasse tempo para encenar um romance entre duas mulheres com salsichas em vez de dedos, "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" é o filme ideal para si. No entanto, à semelhança de "Swiss Army Man", o que surpreende é a capacidade dos Daniels de utilizarem a bizarria como linguagem para falar de temas que nos dizem muito. No limite, eles acreditam que é possível ser profundo e profano, resultando numa provocação sensorial extremamente criativa, que rompe com todos os cânones e nos convida a repensar aquilo que entendemos como "cinema de entretenimento".

A veterana Michelle Yeoh, que reconhecemos de títulos como "O Tigre e o Dragão" ou "Reino de Assassinos", ancora todo o caos que os Daniels soltam no ecrã, providenciando emoções muito humanas à senhora Wang, enquanto Ke Huy Quan, recentemente saído de uma reforma antecipada, é uma revelação completa, demonstrando-se merecedor de mais e melhores papéis do que aqueles que a indústria mundial lhe ofereceu. Tal como Yeoh, ele protagoniza sequências de ação alucinantes, momentos dramáticos a transbordar de emoção e até se aguenta na hora de veicular o humor demente dos Daniels. São eles quem providencia uma âncora para o espetador desde o início, enraizando os acontecimentos num quotidiano facilmente identificável, que nos permite soltar algumas lágrimas no clímax simultaneamente contundente e festivo. Adira-se ou não, "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" comprova o estatuto dos Daniels como autores que não se assemelham a mais ninguém, com uma obra que quer desafiar as convenções. Venham mais filmes seus...

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Texto de Miguel Anjos

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