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CRÍTICA - "O HOMEM DO NORTE"


Quem são os mais importantes autores do cinema contemporâneo? Que nomes mencionaremos aos nossos netinhos, com a admiração com que os nossos antepassados nos falam de Andrei Tarkovsky, Pier Paolo Pasolini ou Robert Bresson? Se nos quisermos cingir aos veteranos, podíamos enumerar as personalidades da praxe (Lars Von Trier, Quentin Tarantino, Paul Thomas Anderson, etc.), no entanto, apetece-nos dedicar um momento aos jovens que andam por aí a arriscar tudo, lutando arduamente para financiar experiências limite que nos convocam para que nos relacionamentos visceralmente com aquilo que é exposto no ecrã. Para que sintamos como as personagens, em vez de nos limitarmos a ouvi-las falar.

Robert Eggers é um representante desse movimento não-oficial, nem coordenado, de artesãos que nos oferecem visões do mundo que rompem com os cânones do que é politicamente correto ou aceitável numa "cultura" sanitizada até ao extremo, propondo-nos um cinema que nos atira para o meio de um caos alucinatório que é, afinal, mais fiel à maneira como experienciamos a vida do que qualquer devaneio socio-realista. Em "O Homem do Norte", adaptação do mito viking em que William Shakespeare foi buscar inspiração para escrever o seu "Hamlet", somos literalmente empurrados para um inferno terreno, onde o castanho pardacento da lama se confunde com o vermelho vivo do sangue, que vai sendo constantemente derramado. A nossa integridade física é inteiramente respeitada (afinal, por mais imersivo que o filme possa ser, no fim de contas, continuamos apenas sentados a contemplar um majestoso ecrã), mas quando os créditos começam sentimos a exaustão do guerreiro errante Amlet, com quem sofremos perdas e celebramos vitórias, à medida que entendemos que, por vezes, a complexidade da vida é tamanha, que simplesmente não há como manter qualquer tipo de inocência. Não é inteiramente claro que Eggers seja um niilista (até porque, ninguém que filma os mecanismos selvagens do desejo e o poder enlouquecedor da devoção, que só pode nascer do mais puro amor, pode ser completamente descrente no valor da experiência humana), mas os seus opus não se coíbem de expor a natureza cruelmente ilusória da inocência como uma benesse que nos é oferecida, só para ser espezinhada imediatamente a seguir.


Tudo começa quando Amlet (Oscar Novak) era um jovem príncipe, ciente de que o sangue que lhe percorria as veias o levaria a assumir uma posição de poder, mas ingénuo em relação às implicações (i)morais de reclamar esse título. Certo dia, o Rei Aurvandil (Ethan Hawke), o seu pai é decapitado por Fjölnir (Claes Bang), o tio desejoso de se apoderar do trono, que a sua condição de filho bastardo lhe negou. Contra os caprichos sádicos desse novo tirano, o pequeno Amlet escapa, à medida que repete incessantemente uma jura que nem ele, nem os seus antepassados e muito menos os Deuses o vão deixar esquecer: "Vou vingar-te pai. Vou salvar-te mãe. Vou matar-te Fjölnir."

Quando o reencontramos, cremos que mais de duas décadas depois (Eggers nunca o especifica em concreto), ele não é mais a criança angelical a que Oscar Novak dava vida, mas sim uma besta homicida, encarnada por um imponente Alexander Skarsgård, quase inteiramente desprovida de qualquer traço reconhecível de humanidade, ao serviço de um bando de vikings que deambulam pela Islândia a matar, violar, escravizar e pilhar sempre que veem uma abertura para tais práticas. Contudo, uma confluência de eventos, levam-no a acordar para a sua missão divina, convencendo-o a tecer um plano diabólico para destruir toda a existência de Fjölnir, no processo, redimindo o bom nome do seu pai e resgatando a sua mãe das garras de tão monstruosa criatura.


Eggers recusa quaisquer tentativas de encontrar nas suas personagens algo de admirável ou heróico, sendo frequentemente explicitado que nenhuma delas tem qualquer problema na altura de cometer os atos mais imorais, se isso lhes parecer necessário (quem quiser ler os seus filmes como manifestos do mais puro niilismo continua, portanto, a ter uma abertura muito compreensível e persuasiva para o fazer), como diria Jean Renoir (e, perdoem-nos qualquer incorreção, uma vez que parafraseamos de memória), "ninguém tem razão, mas todos têm as suas razões". Essa abertura à malícia das personagens, certamente, terá um efeito dissuasor, desencadeando um sentimento de desconforto nos espetadores que gostam das suas narrativas divididas entre personagens "muito boas" e "muito más", mas Eggers recusa esse tipo de simplismos, limitando-se, ou melhor, ousando apresentar-nos seres de carne e osso que são, na verdade, um espelho das nossas próprias imperfeições, da violência e ódio que encerramos dentro de nós, mesmo quando conseguimos já sentir o chamamento redentor do amor.

Eggers encena este dilema com o requinte, a eloquência estética e a coerência temática a que o autor de "A Bruxa" e "O Farol" nos habituou. Para ele, o cinema é muito mais do que uma forma de contar histórias, é uma experiência maior que a vida, plena de sentimentos exacerbados que nos engolem vivos, se nos disponibilizarmos a isso. Assim, entramos nesta delicada dança de lama e sangue, realismo e espiritualidade (quem conhece a filmografia de Eggers, lembrar-se-á que esses conceitos não se excluem mutuamente, pelo contrário), onde a brutalidade e espetacularidade das sequências de ação - exuberantes, hipnóticas, telúricas - se confunde com o intimismo dilacerante dos momentos raros, raríssimos em que as almas errantes de "O Homem do Norte" se vulnerabilizam perante aqueles que amam (as cenas entre Alexander Skarsgård e Anya-Taylor Joy, em particular, exibem um romantismo antiquado que comove sempre, mesmo quando sentimos que a sombra fantasmagórica da tragédia se abate sobre os dois amantes de forma inevitável e irreversível). É um filme como nenhum outro, um épico medieval a meio caminho entre "Destino de Sangue" e "Vem e Vê", recuperando a verve de um clássico como "O Último Viking", mas cobrindo-a de um misticismo permanente, aliado a uma procura obsessiva pela autenticidade (Eggers é, como se sabe, alguém que procura reproduzir o passado exatamente como ele era, da arquitetura à cadência dos atores, sem nunca deixar que isso o impeça de imbuir todas as suas narrativas com elementos sobrenaturais que, em última instância, apenas revelam a verdadeira natureza das personagens que filma) que lhe dá um toque quase etnográfico. Nada disto seria possível, claro está, sem o compromisso quase masoquista de um elenco que arriscou a sua integridade física para dar vida aos devaneios de Eggers, e se, Skarsgård é um destaque óbvio, incorporando a violência e fúria de Amlet, sem nunca se esquecer de lhe providenciar a melancolia latente de quem nunca conseguiu (e, tudo indica, nunca conseguirá) abandonar os ventos da tragédia que acompanham cada respiração sua, não há como ignorar o trabalho dos extraordinários secundários, especialmente, de Anya-Taylor Joy, a musa de Eggers, aqui como uma femme fatale de bom coração, que se afigura como a única pessoa capaz de salvar a alma do nortenho titular da violência que sempre o moveu, e Nicole Kidman, numa Lady Macbeth que tem qualquer coisa da burguesa entediada a que dava vida em "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (outro conto de moralidade e imoralidade, onde a ameaça permanente do derramar de sangue era uma condenação inescapável). São composições inatacáveis, capazes de meter no chinelo qualquer uma das premiadas na mais recente edição dos prémios da Academia e, no entanto, essas performances só poderão existir devido ao contexto criado pelo visionário Eggers, dono de um cinema que nos leva ao limiar da loucura uma e outra vez, só para depois nos deixar com um breve vislumbre de transcendência, um instante de elevação, nos interstícios da realidade, longe dos aspetos mais nefastos da comédia humana... e nem o cinema, nem a vida nos podem providenciar mais que essa benesse inevitavelmente fugaz, mas tão, tão preciosa.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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