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CRÍTICA - "O DOMINGO DAS MÃES"

O cinema, americano ou não, nunca ocultou o seu interesse pela Segunda Guerra Mundial. No entanto, é raríssimo encontrar um filme que se lembre de mencionar os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial. Em anos recentes, vêm à memória apenas dois exemplos, "Testemunho de Juventude" e "Mulher Maravilha", e se, o primeiro é mesmo um olhar acutilante sobre o sucedido, convenhamos que, literalmente qualquer outro conflito armado poderia ter servido de pano de fundo ao segundo, sem que fosse necessário fazer nenhum tipo de alteração ao argumento. Ora, "O Domingo das Mães" junta-se a "Testemunho" na lista curtinha de títulos francamente fascinantes sobre o tema, lidando com as muitas ramificações do confronto armado, sem nunca necessitar de nos mostrar imagens das trincheiras.

Inglaterra, 30 de Março de 1924. Jane Fairchild (Odessa Young) trabalha como empregada dos Niven (Colin Firth e Olivia Colman), um casal da aristocracia britânica. Há já vários anos que mantem um relacionamento secreto com Paul Sheringham (Josh O’Connor), filho dos vizinhos dos Niven, que se encontra de casamento marcado com Emma Hobday (Caroline Harker), uma rapariga proveniente do seu círculo social. Numa espécie de despedida, Jane concorda em passar o seu dia de folga, precisamente o tal "Domingo das Mães", na companhia de Paul, que se encontra sozinho em casa. Isolados do mundo, entregam-se à sua paixão clandestina uma última vez, enquanto Jane se afunda num turbilhão de memórias...

Impressionista e lânguido, sensual e elíptico, emocionalmente reservado e meticulosamente filmado, "O Domingo das Mães" rompe com os cânones do típico melodrama de época britânico, providenciando-nos uma dimensão carnal que não estamos habituados a encontrar neste tipo de obra e, acima de tudo, questionando o que se esconde por detrás da opulência de meios com as quais estas produções tendem a contar. À semelhança de qualquer episódio de "Downton Abbey", somos imediatamente assoberbados pela beleza natural dos cenários ingleses, populados por gente bonita com figurinos de impressionante rigor, mas o que interessa à realizadora Eva Husson, autora do bem-curioso "As Filhas do Sol", não é essa componente meramente decorativa, mas sim as mágoas que perseguem as personagens, veja-se, por exemplo, a forma como o filme retrata as personagens de Olivia Colman e Colin Firth, escamoteando os clichés associados à representação dos grandes proprietários e focando-se na dor de dois seres que se afundam inexoravelmente no luto pelos filhos mortos em combate.

O trabalho do elenco é, aliás, fundamental para a construção de qualquer melodrama e "O Domingo das Mães" não é exceção, e se, Colman e Firth são mesmo exímios, não haverá como negar que o filme pertence inteiramente à jovem Odessa Young, aqui a deslumbrar com uma composição de invulgares nuances emocionais, muito bem secundada por dois outros contemporâneos seus, Josh O'Connor e Sopé Dìrísù, que personificarem os "homens da sua vida", como ela própria menciona a certo ponto. Husson e a sua argumentista Alice Birch, responsável pela adaptação televisiva de "Normal People", desenvolvem, assim, um contundente olhar sobre as dores do crescimento e os fantasmas do luto, onde a pacatez dos cenários entram em confronto direto com a inquietação intima das personagens. Uma excelente surpresa.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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