Os filmes da Marvel tornaram-se numa força dominante no mercado da exibição cinematográfica. No entanto, a indústria norte-americana não parece reconhecer-lhes grandes méritos. Seja porque gente como Martin Scorsese ou Jane Campion não se têm coibido de expressar o que sentem acerca deles (e da sua popularidade) ou porque a Academia de Hollywood nunca parece reconhecê-los como sendo particularmente brilhantes em nenhum campo, nem mesmo nos ditos "técnicos". Claramente, o público não concorda com esse desdém e os mais de 22 mil milhões de dólares em receita de bilheteira mundial são prova disso, mas esse consolo não cura todas as "feridas" do produtor Kevin Feige (o arquiteto do chamado Universo Cinemático Marvel) e de muitos dos seus empregados, que rotineiramente têm expressado a sua frustração.
Mas, porque é que estes projetos geram tanta animosidade em Hollywood? Afinal, ainda que a DC Comics tenha uma experiência bem mais acidentada nas bilheteiras (e até com a crítica), muitos dos seus títulos se têm revelado verdadeiros aglutinadores de prémios (a título de exemplo, citemos apenas "O Cavaleiro das Trevas" e "Joker"), logo, não podemos dizer que o problema se concentre exclusivamente na presença dos super-heróis. Pois bem, se quisermos ser sintéticos, digamos apenas que o "problema" (e não é consensual que exista um) se prende com a relação do estúdio com os seus realizadores, a quem só muito raramente é dada uma quantidade significativa de liberdade criativa, uma vez que, nenhum destes filmes é uma entidade singular, mas sim uma peça de um universo narrativo que conjuga centenas de personagens. Nesse contexto, a mais pequena escolha pode descarrilhar toda a máquina multimilionária, levando o produtor Kevin Feige a preferir adotar um regime fabril quase matemático, segundo o qual a conceção de cada filme nasce de uma fórmula que tem vindo a ser aperfeiçoada desde que o primeiro "Homem de Ferro" começou a franquia.
Para quê perder tempo com esta longuíssima introdução? Acontece que, numa surpresa francamente imprevisível, a Marvel fez mesmo "um filme de autor", entregando "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" ao veterano Sam Raimi e permitindo-lhe que se mantenha fiel à sua identidade enquanto realizador. O resultado, mais do que infinitamente superior ao banalíssimo "Doutor Estranho", de 2016, assinado pelo habitualmente confiável Scott Derrickson, é mesmo um dos melhores títulos do Universo Cinemático Marvel, surpreendendo-nos com um nível de criatividade que há muito não víamos num blockbuster desta escala, aqui aliado à energia caótica e sensibilidade macabra que conhecemos do Rami dos tempos saudosos da franquia "Evil Dead".
Em "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura", reencontramos Stephen Strange, outrora, um neurocirurgião conceituado, hoje, o feiticeiro mais poderoso da Terra, ainda a lidar com o impacto dos acontecimentos de "Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa", onde lançara um feitiço proibido que abriu uma passagem para o Multiverso, um lugar onde coexiste uma infinidade de universos alternativos e versões alternativas das muitas personagens que compõem o catálogo de heróis e vilões da Marvel. Adiantar mais detalhes acerca da sinopse, levar-nos-ia a correr o risco de revelar demasiado, embora, os últimos trailers não se tenham coibido de nos informar acerca do envolvimento de algumas personagens emblemáticas deste universo, no entanto, por respeito aos fãs, fiquemo-nos por aqui.
Como previamente mencionado, a "arma secreta" de "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" é mesmo a criatividade contagiante do seu autor, que consegue manter o ambiente brincalhão que associamos aos restantes filmes do Universo Cinemático Marvel, enquanto lhe providencia uma qualidade mórbida que, certamente, agradará aos seus fãs. Aquando do lançamento do primeiro "Doutor Estranho", a Marvel já tinha prometido a introdução de elementos provenientes do cinema de terror, mas o filme de Scott Derrickson não era mais que uma regurgitação da estrutura do "Homem de Ferro" original, com truques estilísticos repescados de "A Origem". O mesmo não acontece aqui, onde encontramos Raimi a incorporar o clima de constante (e contagiante) insanidade narrativa e estética que trouxe aos seus "Evil Dead", particularmente, numa reta final que encapsula todas as suas obsessões, misturando sentimentalismo cândido (um bocadinho foleiro, não argumentamos o contrário, mas isso até lhe dá algum charme), carnificina sobrenatural e um sentido de humor afinadíssimo, que pontua a ação brilhantemente.
E se, a frescura introduzida pela realização dá corpo a um filme muito distinto do seu predecessor, também impacta as interpretações. Cumberbatch encontra-se bem mais solto aqui, providenciando um nível correto de intensidade e tragédia à sua personagem, enquanto demonstra as componentes menos agradáveis da personalidade de Stephen (a sua soberba, por exemplo), sem nunca deixar que se torne irritante, e só hesitamos em dizer que o filme lhe pertence porque Elizabeth Olsen surpreende imenso, emprestando à sua Wanda a espessura de uma grande vilã clássica e a intimidante fisicalidade de uma das figuras demoníacas que encontraríamos noutros títulos do catálogo de Raimi. Se a Marvel corresse mais riscos como "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura", talvez, a sua imagem junto dos círculos mais cinéfilos fosse bem melhor do que é...
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