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CRÍTICA - "TOP GUN: MAVERICK"

"Quem éramos? Quem éramos quando éramos quem nós éramos?" O lamento pertence à personagem de Kylie Minogue num dos momentos mais impactantes de "Holy Motors", de Leos Carax. No entanto, podíamos aplicá-lo à carreira de Tom Cruise. Durante muitos anos, a sua carreira seguia uma política estrita, que o levava a evitar sequelas e filmes muito violentos. As razões que o motivaram a delinear essas restrições, apenas ele conhecerá (segundo rumores, Cruise pensava que isso o levaria a conquistar um Óscar, mas, nunca aconteceu). Nesse período, recusou-se continuamente a regressar aos seus maiores sucessos de bilheteira, apesar da vontade dos estúdios de lhes dar continuação, e trabalhou com alguns dos maiores realizadores da contemporaneidade, como Barry Levinson, Oliver Stone, Stanley Kubrick, Paul Thomas Anderson ou Michael Mann.

Contudo, o advento das franquias de super-heróis e derivados mudou a indústria e Cruise soube que necessitava de mudar se queria manter o seu estatuto de estrela de cinema, capaz de mobilizar milhões de espetadores por todo o mundo. Então, tornou-se produtor, dedicou-se quase inteiramente a potencializar o franchise "Missão Impossível" e começou a cultivar a sua imagem meticulosamente (recentemente, uma jornalista do Indiewire queixava-se de que ele dá sempre a mesma entrevista, esquecendo-se que isso faz parte do seu "plano de negócio"), trabalhando afincadamente nos filmes que escolhe fazer e recusando a utilização de duplos sempre que possível (o que já o hospitalizou mais que uma vez...), no processo, capitalizando no seu carisma e vitalidade (ele não envelhece e tem consciência disso) para fazer valer uma imagem de incansável herói de ação, que é reconhecida globalmente por espetadores que sabem que fazem um bom investimento com o dinheiro do bilhete quando vão ver um filme da "marca Tom Cruise". Resumidamente, o homem garante um bom espetáculo.

Quase 40 anos depois de "Top Gun: Ases Indomáveis", de Tony Scott, ter "aterrado" nos cinemas (prometemos que os trocadilhos foleiros acabam aqui), Cruise regressa ao papel de Pete "Maverick" Mitchell, o piloto espalha-brasas da Marinha, em "Top Gun: Maverick", de Joseph Kosinski. Uma sequela que enfrentava múltiplos dilemas, a começar pelo facto do estatuto da fita original ser um tanto ou quanto ambivalente. Afinal, se é inegável que se revelou um retumbante sucesso financeiro, que ocupa um lugar muito especial no caderno de afetos de muita gente, também é factual que o filme de Tony Scott não é reconhecido como um marco cinematográfico do que quer que seja. Por cada pessoa que o vê como um pilar da sua juventude, há outra que contesta o seu iconismo, acusando-o de não passar de um produto foleiro, ultrapassado e até risível de um passado distante.

E essa "distância" não se prende unicamente com o passar das últimas quatro décadas, mas, com as transformações que os próprios EUA sofreram. O primeiro "Top Gun" é sim um produto dessa América patriota, otimista, confiante e (aparente ou supostamente) coesa, porventura, demasiado ingénua, que encarava os seus militares como heróis comparáveis a qualquer personagem da Marvel ou DC Comics.

Felizmente, Tom Cruise, Joseph Kosinski, os argumentistas Christopher McQuarrie (colaborador habitual de Cruise) e Eric Warren Singer (colaborador habitual de Kosinski) e o produtor Jerry Bruckheimer souberam reconhecer que a sociedade mudou, ao ponto de ficar irreconhecível. E se, Maverick continua igual a si mesmo, ele encontra-se num mundo que o encara cada vez mais como arcaico e obsoleto.

Em "Top Gun: Maverick", reencontramos o nosso herói num período particularmente frágil. Maverick recusa-se repetidamente a ser promovido, de modo a poder continuar a voar, em vez de ficar preso a um gabinete. Um dia, deixa que a sua soberba leve a melhor e acaba a ser incumbido de treinar uma equipa de talentosos jovens pilotos, para uma missão potencialmente letal. Maverick aceita relutantemente, mas há um problema, é que um dos seus novos pupilos é Bradley "Rooster" Bradshaw (Miles Teller), filho do falecido Goose (Anthony Edwards), o antigo parceiro de Maverick, que nunca conseguiu reconciliar-se com essa morte, nem abandonar o sentimento de culpa que o persegue dia e noite.


A partir daí, "Top Gun: Maverick" segue a fórmula estabelecida por uma das melhores sequelas tardias em memória recente, o "Creed", de Ryan Coogler, colocando o antigo protagonista a assumir-se os encargos e responsabilidades de um professor, que necessita de preparar o descendente de uma outra personagem icónica para um embate futuro, numa odisseia que, inevitavelmente, os ajudará a ambos a crescer emocionalmente. Nesse sentido, ainda que reconheçamos que o filme de Kosinski nunca sequer se aproxima da pungência do de Coogler, há que admitir que estamos a anos luz do primeiro "Top Gun", não só porque as sequências de ação são, de facto, bastante impressionantes, legitimando a insistência de Cruise em reduzir a utilização de efeitos visuais a um mínimo indispensável, mas também porque o argumento evidencia uma maturidade que não era necessariamente esperada.

Para começar, porque Christopher McQuarrie e Eric Warren Singer, como os excelentes argumentistas que são, têm o mérito de manter a atmosfera brincalhona da primeira fita, pontuando toda a narrativa com um sentido de humor que surge naturalmente das interações entre as personagens, sem nunca esquecer as componentes mais dramáticas da narrativa, seja a relação de Maverick com uma mãe solteira (Jennifer Connelly), com quem já se envolvera no passado, ou, o momento que partilha com Ted Kazansky, que Val Kilmer personificara no filme original. Ele, que foi violentado por um cancro, deixando-o praticamente incapaz de continuar o seu ofício, faz aqui uma "perninha", fechando um ciclo (e, porventura, uma carreira) e providenciando ao filme uma intensidade quase trágica que surpreende, nem que seja só pela naturalidade com que o argumento a consegue incorporar, sem cair em sentimentalismos manipuladores ou pieguices. É apenas uma sequência que comove pelo quão genuína nos parece ser e Cruise e Kilmer são exímios.

Aliás, apetece dizer que há muito não víamos Cruise numa performance assim tão forte, o seu compromisso aos filmes que em que escolhe participar é inquestionável e as suas contas hospitalares aí estão para o comprovar, no entanto, por mais exuberantes que sejam os últimos capítulos da franquia "Missão: Impossível", não lhe costumam oferecer material dramático muito desafiante, nem lhe dão tantas oportunidades de demonstrar que consegue ter imensa piada. À beira de completar 60 primaveras, com uma dentição de um jovem de 20 e a expressão jovial de quem é capaz de fazer tudo para entreter o seu público, Cruise corresponde inteiramente à ideia quase mitológica que viemos a desenvolver da estrela de Hollywood e "Top Gun: Maverick" prova o porquê de assim ser inteiramente.

E, por uma vez, os jovens que acompanham os veteranos do elenco (além de Cruise, Connelly e Kilmer, há gente como Ed Harris, Jon Hamm ou Charles Parnell) não desmerecem os seus mentores, particularmente, Miles Teller, extraordinário no papel do tenente que todos percebemos desde cedo ser o sucessor natural de Maverick, que parece existir num estado de permanente conflito, sendo incapaz de aceitar acontecimentos passados que insistem em dominar o seu presente, e Glenn Powell, uma das revelações de "Todos Querem o Mesmo", de Richard Linklater, que veicula (e, de certa forma, personifica) os elementos mais ligeiros do filme com classe e carisma. Nas mãos de um ator menos charmoso, é possível que a sua personagem se tornasse detestável bastante cedo, mas Powell nunca permite que isso acontece. Hollywood que preste atenção a estes dois rapazes.

Portanto, se cresceu a admirar os RayBan de Cruise e a cantarolar "Take My Breath Away", dos Berlin, é bem possível que "Top Gun: Maverick" se conte entre os seus filmes favoritos do ano, mas mesmo os entusiastas do "cinema pipoca" moderno são muito bem capazes de encontrar muito que apreciar aqui...

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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