Em 2002, "Irreversível" colocou o nome de Gaspar Noé nas bocas do mundo, providenciando-lhe um estatuto de "provocador" que ele certamente apreciou (e continuará a apreciar). Passados 20 anos, Noé nunca mudou substancialmente (o que, dependendo da perspetiva de cada um, tanto pode ser muito bom ou muito mau). Da sua persona incendiária a uma filmografia intransigentemente idiossincrática, que não faz qualquer concessão ao espetador mainstream, pouco habituado ao seu modelo de experimentalismo avant garde. Noé encontrar-se à, portanto, numa situação similar a de outros "provocadores" contemporâneos como Nicolas Winding Refn, mais do que um mero "autor" (ainda por cima, uma expressão que ninguém parece compreender atualmente), ele tornou-se numa "marca", representante de um certo ideal estético e narrativo que ou se ama ou odeia.
Por todos os motivos e mais alguns, nada disso é particularmente negativo, até porque num momento em que a sociedade continua a desvalorizar o cinema, ajuda ter reputação de rock star, contudo, é possível que o escândalo em torno do conteúdo dos filmes de Noé tenha engolido as suas ressonâncias temáticas e estéticas. Afinal, "Enter The Void - Viagem Alucinante", "Love" ou "Clímax" são bem mais do que acumulações de movimentos de câmara acrobáticos e sequências "chocantes" (o que quer que isso signifique num mundo permanentemente dessensibilizado)... Nesse sentido, "Vortex" parece inaugurar um novo capítulo na sua filmografia, não só porque troca os protagonistas jovens por um casal de idosos (pormenor nada secundário, tendo em conta que a juventude é um tema central na obra de Noé), mas também porque nos leva para um novo patamar de desconforto, de tal modo contundente no seu realismo que se torna impossível ignorar aquilo que nos está a dizer, mesmo que nunca deixemos de reparar na grandiloquência da mise en scène.
Encontramo-nos num apartamento parisiense, onde, sem sabermos imediatamente, decorrerá quase todo o filme. Lá, habita um casal idoso, cujos nomes nunca saberemos. Ela (Françoise Lebrun, protagonista de "A Mãe e a Puta", um dos filmes prediletos de Noé) é uma médica reformada. Ele (Dario Argento), um crítico de cinema, que planeia aproveitar a sua velhice para escrever um livro sobre o onirismo no cinema (escusado será dizer, um tema que dirá muito a Noé). Excluindo a missiva iminentemente melancólica que abre "Vortex" ("Para todos aqueles cujas mentes se desvanecerão antes dos seus corações"), a primeira cena quase parece sugerir um daqueles filmes fofinhos e comoventes que apresentam velhice como um período mágico, retratando Argento e Lebrun a estrearem uma varanda que ela decorou recentemente, onde partilham um lanche e citam Poe ("a vida é um sonho dentro de um sonho").
No entanto, cedo entendemos que existem problemas. Ele sobreviveu recentemente a um AVC, havendo muito boas possibilidades de sofrer sequelas, e ela começa já evidenciar sinais (subtis) de demência. Uma situação pouco auspiciosa, sem dúvida, mas que eles parecem preferir ignorar, pelo menos, enquanto isso for possível. Infelizmente, como costuma acontecer na vida e nos filmes de Noé, as coisas pioram e pioram rápido, a partir do momento em que a mente dela se "desvanece" permanentemente, permitindo-lhe apenas ocasionais momentos de lucidez. Esse é também o momento em que a maioria ousadia formal de "Vortex" se revela, a partir do momento em que a perspetiva dela sobre a realidade é distorcida pela demência (efetivamente, arrastando-a para um espaço mental e espiritual que difere do dele), o ecrã parte-se em dois, materializando o conceito central desta elegia: se o nosso corpo perverte tudo aquilo que sabemos e sentimos a ponto de os tornar irreconhecíveis, continuamos a existir no mesmo "plano" que aqueles que nos rodeiam? Noé, certamente, acredita que não.
Dada a natureza maximalista da sua realização, o discurso em torno dos filmes de Noé tende sempre a centrar-se nas coisas que ele faz, conscientemente ou inconscientemente, implicando que o trabalho dos restantes intervenientes tem qualquer coisa de secundário. Ora, é inquestionável que não é possível imaginar "Vortex" como um drama convencional, saído das mãos de um qualquer tarefeiro, desprovido da imaginação e arrojo de Noé, no entanto, é absolutamente essencial reconhecer que, precisamente devido à qualidade obsessiva das suas composições visuais e temáticas, o sucesso dos seus "empreendimentos" criativos depende inteiramente da eficácia dos peões que coloca em jogo. E que "peões"! Lebrun é absolutamente estonteante, convencendo-nos instantaneamente do turbilhão de permanente confusão e incerteza em que a sua personagem tropeça, e Argento, que conhecemos quase unicamente devido ao seu (admirável) trabalho atrás das câmaras (recordemos que ele é o autor de clássicos como "Suspiria" ou "O Mistério da Casa Assombrada"), assombra com uma composição de invulgares nuances emocionais, que, talvez, até inclua elementos da personalidade do próprio (e de Noé, nomeadamente, a sua cinefilia militante, que o filme nunca secundariza). Não obstante, importa não esquecer também a contribuição do notável Alex Lutz, aqui a dar vida ao filho do casal, um toxicodependente em recuperação que quer, a todo o custo, auxiliar os pais, mas é constantemente confrontado com a sua incapacidade para tal ("quero ajudar-vos, mas nem me consigo ajudar a mim mesmo", lamenta a ele, a certo ponto).
Noé encena a sua via sacra como um pesadelo. Combinando o encantamento do onirismo, com a crueza do melodrama, "Vortex" providencia-nos um olhar contundente, desorientante e comovente sobre os horrores do envelhecimento, evidenciando um autor em completo domínio das mais diversas ferramentas do seu métier. Garantidamente, não será para todos os gostos, nem para todos os estômagos, particularmente, numa conjuntura pós-pandémica em que o interesse em filmes com temas ditos "sérios" se encontra em queda livre, mas o arrojo formal de "Vortex", aliado à sua exploração humanista, mas nunca sentimental (muito menos manipuladora, como comprovado pela total ausência de uma banda-sonora, a título de exemplo), constitui uma proposta cinematográfica deveras aliciante, que promete ficar como uma das mais memoráveis de 2022.
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