Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "SENTIMENTAL"

A comédia é frequentemente incompreendida. Provavelmente, porque possuímos um preconceito inconsciente qualquer que nos leva a pensar que aquilo que nos faz rir, não pode nunca ser tão intelectualmente enriquecedor como o que nos faz chorar. É um argumento falacioso, redutor e objetivamente falso, contudo, não adianta fingirmos que não existem muitos que ostentam tal ideologia, afinal, quantas comédias encontramos nas principais secções de festivais como Cannes ou Veneza? E entre os nomeados para Melhor Filme nos Óscares ou Césares?

"Sentimental", a oitava longa-metragem de Cesc Gay, autor de "Krámpack" e "Truman", é um ótimo exemplo de um filme que nunca deixa que a sua aparente ligeireza atenue a seriedade dos temas que aborda. Reminiscente do cinema de Woody Allen ou Neil LaBute, "Sentimental" providencia-nos um olhar francamente contundente sobre um casamento decadente, que lentamente vai assumindo contornos universais, elaborando um discurso provocador em torno da forma como percecionamos (e, por vezes, condenamos) os nossos próprios desejos, bem como os dos outros. Ainda assim, importará reconhecer que é um tanto ou quanto redutor, interpretar o filme de Gay como sendo apenas uma "análise" do nosso (des)conforto com os aspetos carnais da comédia humana. No limite, este é um retrato da forma como (não) comunicamos, das informações que escolhemos revelar e dos segredos que preferimos ocultar.

Com 15 anos de vida em comum, o casamento de Julio (Javier Cámara) e Ana (Griselda Siciliani) já não é o que era. Apesar de se quererem bem, estão constantemente a implicar um com o outro e, em termos físicos, as coisas há muito que esfriaram. Tudo se agrava quando Laura (Alberto San Juan) e Salva (Belén Cuesta), um casal aparentemente feliz e de bem com a vida, se muda para o andar de cima. Pelos sons que chegam ao andar de baixo, parece que os novos vizinhos têm uma relação bastante mais excitante do que a sua. Um dia, Ana convida-os para um jantar a quatro.

Cámara, Siciliani, San Juan e Cuesta são tremendamente charmosos e veiculam as peculiaridades das suas personagens com eficácia, particularmente, Cámara e San Juan que se evidenciam quase como um contraponto um do outro. O primeiro, sério e extremamente sarcástico, recorrendo à sua inteligência para rebaixar os outros numa tentativa vã de esconder as suas próprias frustrações e inibições. O segundo, bonacheirão e liberal, assumindo desde cedo uma completa impossibilidade de filtrar os seus pensamentos que o leva a fazer os comentários mais impróprios, sem entender que se encontra a quebrar as normas de etiqueta sociais. Ao utilizar apenas um cenário e um quarteto de atores, "Sentimental" nunca funcionaria se o elenco não correspondesse à qualidade da escrita de Gay e, felizmente, ninguém fraqueja em momento algum.

Não obstante, quem rouba as atenções é mesmo o argumento de Gay, pontuado por um sentido de humor absolutamente implacável, que ele maneja como um bisturi, capaz de dissecar os conflitos interiores do conturbado matrimónio de Julio e Ana, sem nunca cair na sisudez, nem na parvoíce. Do princípio ao fim, não paramos de rir, tão hilariantes são os diálogos que vamos acompanhando, mas, também não nos esquecemos da seriedade dos eventos relatados.

Aliás, o elemento mais surpreendente do todo, será mesmo a conclusão, cujo teor obviamente não iremos revelar, mas importa reconhecer a elegância do trabalho de Gay, em permitir a estas personagens que, durante tanto tempo se esconderam por detrás do sarcasmo, que se (re)encontrem num momento de completa vulnerabilidade emocional, providenciando-lhes a elas e a nós um clímax catártico que comove precisamente por nos apanhar tão despercebidos.

Trata-se de uma das melhores e mais subtis surpresas que o calendário cinematográfico português nos trouxe recentemente e é uma pena que tudo indique que vá ser eclipsado pelas ruidosas campanhas de marketing dos blockbusters norte-americanos. Entretanto, Gay já completou uma nova longa-metragem, "Historias Para No Contar", também com Cámara no elenco, esperemos que os distribuidores nacionais nos permitam vê-la o quanto antes!

★ ★ ★ ★ 
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)