Em "Laranjas Sangrentas", há um casal de reformados à beira de um ataque de nervos, que tentam conquistar o primeiro prémio de um concurso de dança para saldarem as suas dividas com o banco, sem que os filhos saibam do assunto, um político corrupto, que necessita do auxílio dos membros da sua entourage (e não só) para impedir que um jornalista exponha o seu historial de falcatruas, e uma rapariga adolescente que sonha em perder a virgindade, mas, teme que essa sua primeira experiência sexual não seja agradável.
O que têm estas pessoas em comum? Pouco ou nada, mas o realizador e argumentista Jean-Christophe Meurisse vai interligá-las por via dos mecanismos da comédia e, eventualmente, do terror. Como assim? Pois bem, de modo a preservar as surpresas que aguardam o seu futuro espetador, digamos apenas que se ouvíssemos alguém a descrever "Laranjas Sangrentas" como um cruzamento macabro de "Magnólia", "Fim-de-semana Alucinante" e "Family Guy", não nos pareceria nada errado ou enganador.
Enraizado num cinema francês cínico e mordaz, capaz de nos providenciar um olhar francamente desencantado sobre a sociedade gaulesa contemporânea (que, naturalmente, acaba por ser transversal à maioria das sociedades europeias, incluindo a portuguesa), que tem vindo a ser representado, maioritariamente, por gente como Samuel Benchétrit, Benoît Délépine e Gustave Kervern, Meurisse desenha um pequeno mosaico de personagens e acontecimentos, que colocam a nu as muitas clivagens (ideológicas e não só) que hoje nos dividem em praticamente todos os aspetos.
Se é um filme agressivo? Sim, aliás, a sua brutalidade é mesmo incessante, tanto no seu sentido de humor cáustico (quem acha que existe algum tipo de "negrume" na comédia de Dave Chappelle e Ricky Gervais que se prepare para as coisas que se dizem por aqui), como no sangue que, inevitavelmente, será derramado num terceiro ato que promete chocar tudo e todos. Mas, não será também o nosso mundo pautado por essa mesma agressividade?
No limite, "Laranjas Sangrentas" é um filme sobre isso, sobre os instintos primitivos que nos levam a odiar, a descriminar ou, simplesmente, a dedicar tardes inteiras a escrever comentários rudes e maliciosos nas redes sociais. Nesse sentido, aquilo que Meurisse nos diz tem tanto de desanimador como de inegável: no fundo, no fundo, somos todos umas bestas.
Invariavelmente, a sua natureza perversa garantirá que só uns poucos o apreciarão, mas quem se deixar levar pela contagiante onda de barbaridade desencadeada por Meurisse, está "condenado" a descobrir um clássico de culto imediato.
No MOTELX conquistou o Prémio do Público, vamos confirmar se os votantes tinham razão? Spoiler: Tinham, tinham mesmo.
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Texto de Miguel Anjos
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