Quem conhecer o cinema de Stéphane Brizé, certamente, reconhecerá nele uma vontade muito singular de interrogar os próprios alicerces do nosso sistema económico e, consequentemente, político. No entanto, sem militâncias, o que lhe interessa é entender o funcionamento da realidade, dos seus mecanismos, sempre pelo olhar de quem os experiencia. Ele é, em última instância, um verdadeiro humanista, alguém que entende que não adianta discutir um "problema" (à falta de um termo mais adequado) específico, seja ele qual for, se essa discussão não se centrar no impacto que o mesmo possa ter sobre a vida das pessoas comuns.
A sua mais recente longa-metragem, "Um Outro Mundo", dá seguimento ao trabalho iniciado em "A Lei do Mercado" e "Em Guerra", recuperando o mesmo protagonista, Vincent Lindon, e as mesmas preocupações políticas, económicas, sociais e, acima de tudo, éticas. Desta vez, Lindon dá corpo Philippe Lemesle, um executivo de sucesso, que sacrificou tudo para aceitar a posição de dirigente de uma fábrica de província, secundarizando a sua vida familiar. Esse escolha teve consequências irreversíveis, a começar por um violentíssimo processo de divórcio que o filme acompanha com um olhar quase documental, contudo, profissionalmente, ele parece ser encarado por todos como um verdadeiro messias, alguém que sempre conseguiu guiar a fábrica a bom porto, mesmo quando as condições exteriores e interiores eram tudo menos favoráveis.
Certo dia, o conglomerado norte-americano que comprou a empresa que emprega Philippe anuncia que é necessário que todos os dirigentes despeçam 58 trabalhadores fabris, de modo a aumentar em 2% os lucros dos acionistas (ninguém sabe ou tenta explicar porquê 2%, ficou assim determinado e pronto), levantando uma multiplicidade de problemas, entre os quais, o facto de uma redução de colaboradores ir forçar os que mantiverem os seus postos a assumir ainda mais funções, efetivamente, trabalhando até à exaustão. Philippe começa por reagir com indiferença ou desconfiança aos avisos de quem lhe implora que resista às exigências obscenas dos seus chefes (e dos chefes dos seus chefes, afinal, a certo ponto, existe mesmo alguém que menciona um problema que importa não esquecer, isto é, existir sempre um tubarão maior no patamar seguinte da cadeia alimentar), mas, lentamente vai abrindo os olhos aos horrores daquilo que lhe é exigido e, como nos ensinava a Alegoria da Caverna de Platão, a partir do momento em que abrimos os olhos para a realidade, não é possível voltar atrás (o que, obviamente, não indica que os nossos coabitantes sejam recetivos aos nossos testemunhos).
Nesse sentido, "Um Outro Mundo" quase pode ser encarado como uma fábula, onde o surgimento de uma consciência moral "corrompe" o pensamento e o comportamento de quem se havia deixado intoxicar pela entropia de um universo desumano, que encara o fator humano como uma mera abstração aleatória e, por isso, dispensável. Em "Um Outro Mundo" Philippe acorda para a realidade, para as consequências dos seus atos, como, por exemplo, Hansel e Gretel se apercebiam da crueldade do mundo.
Seguindo essa linha de pensamento, talvez, tenha chegado o momento correto de perguntar, então, o que significa o título do filme, que outro mundo é este? Por um lado, podíamos encará-lo como um jogo semântico, pensado para ilustrar o pessimismo de Brizé, na maneira como retoma um velho slogan da esquerda, "Um Outro Mundo é Possível", retirando-lhe a conclusão esperançosa. Por outro, podemos vê-lo como uma descrição totalmente adequada para o microcosmos que vamos penetrar durante o visionamento, afinal, para o comum mortal, o quotidiano destes executivos de peso, que se reúnem em salas de reunião acéticas, para discutirem o dinheiro que fizeram e o que ainda vão fazer, sem nunca se lembrarem sequer de mencionar as condições de vida dos empregados que lhes garantem essa riqueza, é mesmo "Um Outro Mundo".
"Um Outro Mundo" é, portanto, um filme político? Certamente, na medida em que todos os outros o são. No entanto, numa sociedade excessivamente politizada, onde até os comentários mais idiotas e/ou inconsequentes são interpretados como manifestos políticos, apetece sugerir "Um Outro Mundo" é também existencial, mais especificamente, é um inquérito íntimo sobre a necessidade metafísica, como teorizada por Arthur Schopenhauer (isto é, a necessidade do ser humano de se agarrar a uma ideia transcendente que as ajude a suportar a dureza da vida), providenciando-nos um olhar contundente sobre uma sociedade à deriva, que perdeu uma tela simbólica onde projetar os seus desejos e crenças (uma filiação religiosa, um interesse pela expressão artista, uma relação de grande proximidade com a natureza, etc.) e concluiu que o lucro era um bom substituto. O dinheiro assumiu contornos divinos e, por conseguinte, todos passámos a ser seus escravos.
Na volta, decifrar isso é a chave para entender o os instantes finais do filme, pautados por uma serenidade incomum, sugerindo que, porventura, o único mundo alternativo possível, é interior, do domínio do espírito, da alma, e se encontrará nas outras pessoas, na arte ou na natureza, em tudo aquilo que nos pode ajudar a redimir a alma da brutalidade incessante do quotidiano, conferindo-lhe uma dignidade que um ecossistema desonesto e moralmente corrupto não pode garantir a ninguém. Depois de dois anos, marcados por longuíssimos confinamentos, passados à frente de ecrãs de computador, em que nos "papaguearam" (como já faziam antes) a ideia de que podíamos viver isolados, sozinhos, "Um Outro Mundo" surgirá como uma negação dessa ideologia de clausura, que nos quer solitários nos nossos apartamentos, alimentados pelo sensacionalismo bacoco dos telejornais e o simplismo ilusório das redes sociais.
Escusado será dizer, que num momento em que o público apenas vai às salas de cinema ver espetáculos extravagantes, com orçamentos multimilionários, sustentados por marcas imediatamente reconhecíveis, "Um Outro Mundo" só muito dificilmente encontrará um público, é pena, porque não haverá muitas propostas em cartaz mais dignas do dinheiro do bilhete que este filme. Às más línguas acusá-lo-ão de ser um ataque selvagem ao capitalismo liberal, neoliberal, ultraliberal ou o raio que o parta, mas isso são rótulos modernos, estão aqui hoje e amanhã talvez já tenham sido substituído por outros, enquanto que as preocupações éticas e morais que Brizé levanta são constantes durante toda a existência do homem como ser racional. "Um Outro Mundo" será, então, do seu momento e intemporal, em simultâneo.
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Texto de Miguel Anjos
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