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CRÍTICA - "OS PASSAGEIROS DA NOITE"

Em 2019, o IndieLisboa trouxe-nos "Amanda", de Mikhaël Hers. Para muitos, incluindo aquele que vos escreve, tratou-se de uma revelação absoluta. Subitamente, um dos realizadores mais promissores do novo século materializava-se à nossa frente. "Amanda" nunca estreou no circuito comercial português, no entanto, numa reviravolta do destino, "Os Passageiros da Noite", a sua longa-metragem seguinte, chega, agora, às nossas salas, pelas mãos da Films4You e, resumindo de forma necessariamente panfletária, apetece dizer que, está aqui, o primeiro grande acontecimento cinematográfico de 2023.

Encontramo-nos em 1981, quando a rádio ainda tinha uma popularidade que a passagem do tempo lhe foi retirando ("video killed the radio star", como cantavam os The Buggles), onde o programa "Os Passageiros da Noite", conduzido por Vanda Dorval (Emmanuelle Béart), mais que entretenimento noturno, providencia um escape a muitos dos seus ouvintes, permitindo-lhes conversar com a locutora sobre os seus problemas quotidianos, em público, pela madrugada adentro (Portugal tinha um programa, em tudo, similar a este, intitulado O Passageiro da Noite e animado por Cândido Mota). Eventualmente, o programa de Vanda revelar-se-á instrumental na hora de colocar as personagens principais de "Os Passageiros da Noite" em rota de colisão, mas, até lá, o seu embalo noturno, nostálgico e confessional, serve para nos ajudar a entrar num mundo que já deixou de ser o nosso, preparando-nos para os muitos detalhes (tudo menos secundários, tudo menos decorativos...) que Hers espalhou pelo filme, não para nos dar a sensação de que estamos a olhar para uma reconstrução de museu dos anos 80, mas, para nos colocar mesmo na década de 80, como se hoje ainda fosse ontem...

Assim, conhecemos Elisabeth (Charlotte Gainsbourg), mãe de Mathias (Quito Rayon Richter) e Judith (Megan Northam), uma mulher de meia-idade, abandonada pelo marido, que dá por si à deriva. Um dia, vê e, prontamente, agarra a oportunidade de se juntar à equipa dos Passageiros da Noite, onde conhece Talulah (Noeé Abita), uma rapariga sem-abrigo, que deambula solitariamente por Paris, sem sonhos, nem ilusões. Incapaz de deixar a rapariga ao frio num banco de jardim, Elisabeth convida Talulah a ficar no quarto de hóspedes da família, auxiliando-a a encontrar o calor de um lar, de uma família, à medida que Mathias descobre nela um possível primeiro amor...

Combinando imagens de arquivo (incluindo, por exemplo, um clip do documentário "Jacques Rivette le veilleur", de Claire Denis e Serge Daney), com filmagens estilizadas de modo a parecerem provenientes daquela época, e fazendo amplo uso da música (Joe Dassin, em particular) e do cinema (as "Noites de Lua Cheia", de Éric Rohmer, revelam-se determinantes) do período, Hers convoca os anos 80 de forma tremendamente convincente, mas, não lhe interessa a nostalgia (esse sentimento que parece ter convertido tantos filmes e séries em meras reproduções deficitárias de produções relativamente envelhecidas), porque "Os Passageiros da Noite" é, acima de tudo, uma bonita elegia pelo passado que não volta nunca, um conto comovente em torno da voragem incessante e incontrolável do tempo.

"Tudo o que tivemos foi o que fomos uns para os outros", conclui Charlotte Gainsbourg, com o seu tom doce, ainda que melancólico, entendendo que um período determinante da sua existência terá terminado e expondo o caracter humanista de um filme que é uma pequena "madalena de Proust", repleto de sinais que, no fim, já nos dizem tanto a nós como ao seu autor.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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