Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "MAIGRET E A RAPARIGA MORTA"



Em 1966, estrearam-se, "Maigret und sein grösster Fall", de Alfred Weidenmann, e "O Comissário Maigret em Pigalle", de Mario Landi. Ambos passaram incólumes e, prontamente, caíram no esquecimento coletivo, no entanto, existe, pelo menos, um motivo para os mencionarmos de vez em quando. Acontece que, marcaram as últimas passagens do Comissário Maigret, criado por George Simenon, nas salas de cinema, tendo sido relegado para os ecrãs de televisão nos anos que se seguiram... Até agora!

Pois é, quase cinquenta anos depois, Maigret abandona o pequeno ecrã e muda-se, novamente, para o grande, pela mão de Patrice Leconte, cineasta que tanto nos dá comédias populares ("Barracas na Praia""10 Dias Para Encontrar um Melhor Amigo"), "filmes de prestígio ("O Ridículo""Uma Promessa"), policiais ("Monsieur Hire""O Homem do Comboio") e até uma fábula animada bastante "fora-da-caixa" ("A Loja dos Suicídios"). O resultado impressiona, quanto mais não seja, porque Leconte, estando habituado a trabalhar em todos os registos possíveis e imaginários, decidiu que a forma mais adequada de filmar a prosa de Simenon era providenciar-lhe um enquadramento antiquado, no melhor sentido do termo, filmando as deambulações melancólicas do Comissário por uma Paris cinzenta e tristonha, no contexto de um filme que, estreia em 2023 (as filmagens terminaram em 2021), mas, podia muito bem datar da década de 70.

É verdade, "Maigret e a Rapariga Morta" é o tipo de filme que nos habituamos a dizer (maioritariamente, por preguiça) que já não se fazem. Um conto elegíaco (a mortalidade do próprio Maigret é, afinal, um tema central na narrativa), elegantemente travestido de policial à antiga, onde Leconte, fiel, fidelíssimo ao espírito de Simenon, nos transporta para os pequenos mundinhos das suas personagens, afligidas por problemas quotidianos iguais aos nossos que, em última instância, as levam a colidir, de uma forma ou de outra, com o mundo do crime. Nele, um Maigret (Gérard Depardieu), que se queixa de fadiga e falta de apetite, é aconselhado a deixar de fumar pelo médico, o que não o impede de trazer sempre consigo o seu emblemático cachimbo vazio, reconhecendo a importância simbólica desse "adereço". Em seguida, é incumbido de resolver o homicídio de uma jovem que apareceu morta sem identificação, alguém que caiu por entre as falhas do mundo...

Abandonando a abordagem altamente estilizada das readaptações dos romances de Agatha Christie levadas a cabo por Kenneth Branagh e as piscadelas de olho da franquia "Knives Out", de Rian Johnson, "Maigret e a Rapariga Morta", nem tenta modernizar um clássico, nem reinventá-lo, e essa acaba por ser uma das melhores surpresas que tem para nós. Ao manter um registo tremendamente sóbrio, Leconte constrói um policial humanista como poucos, onde o que salta à vista é a figura imponente, mas, solitária deste detetive empático, íntegro e digno, que escuta tudo aquilo que lhe dizem. Um eterno observador da condição humana, que deduz tudo a partir dos pormenores em que mais ninguém repara, Maigret não é um super-homem, nem um prodigioso génio, ele é tão só um homem que olha (e ouve) os seres humanos que o rodeiam com atenção e respeito. De gabardina vista e cachimbo na mão, Depardieu é formidável, captando todas as nuances que fazem de Maigret um herói tão fascinante, ao mesmo tempo que, dá tempo e espaço para que os secundários em seu torno brilham, em particular, o falecido André Wilms, na sua última prestação, que partilha com Depardieu um dos momentos mais tocantes de todo o filme. É caso para dizer que, só mesmo para ver estas duas lendas a interagir, já valeria a pena pagar o preço do bilhete.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)