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CRÍTICA - "MAL VIVER" E "VIVER MAL"

João Canijo continua a sublimar as suas tendências voyeuristas. No díptico "Mal Viver" e "Viver Mal", abandonamos o território militantemente realista de "Sangue do Meu Sangue" e "Fátima" ("o realismo social ficou morto e enterrado com o Fátima", anunciava o próprio Canijo numa entrevista recente), a meio-caminho entre John Cassavetes e Luc e Jean-Pierre Dardenne. Desta vez, andamos mais próximos do cinema de Ingmar Bergman, das suas personagens amarguradas, diálogos eloquentemente violentos e ambiência fantasmática.

Estamos num hotel decadente, em Ofir ("uma espécie de Cascais do Porto nos anos 1950 e 1960", segundo Canijo), propriedade de Sara (Rita Blanco), que continua a gerir aquele espaço, juntamente com as filhas Piedade (Anabela Moreira) e Raquel (Cleia Almeida). Que saibamos, apenas Ângela (Vera Barreto), cozinheira e "faz tudo", ali vive e trabalha sem um vínculo sanguíneo com aquelas mulheres. Um dia, Salomé (Madalena Almeida), filha de Piedade, aparece no hotel, por convite de Sara, com o objetivo de lá ficar por tempo indeterminado.

Acontece que, Piedade vive num estado depressivo que a deixou quase catatónica, consequentemente (assumimos nós), o seu casamento ruiu e Salomé terá crescido com o pai, desconhecendo o chamado "amor de mãe". Simultaneamente, o hotel recebe 8 hóspedes, incluindo três habitués.

Em "Mal Viver", seguimos o quotidiano de Sara, Piedade, Raquel, Ângela e Salomé, enquanto trabalham para manter o hotel de pé, à medida que as suas vidas desabam. Em "Viver Mal", baseado em três peças de August Strindberg, acompanhamos alguns momentos (uns íntimos, outros nem tanto) da vida dos hóspedes, onde conhecemos uma influencer fútil (Filipa Areosa) e o namorado fotógrafo (Nuno Lopes), um casal recém-casado (Lia Carvalho e Rafael Morais) em que o marido trai a mulher com a sua amoral e monstruosa sogra (Leonor Silveira), e uma mãe-galinha calculista e cruel (Beatriz Batarda) que manipula a filha (Leonor Vasconcelos) constantemente, aspirante a atriz), envenenando a sua relação com a namorada (Carolina Amaral).

"Mal Viver" e "Viver Mal" rimam um com o outro (ou melhor, ecoam um no outro), partilhando personagens e até momentos (vemos vários "episódios" repetidamente, com novas perspetivas que recontextualizam a nossa perceção do que ali se passa), contudo, providenciam-nos experiências tremendamente diferentes. Em "Mal Viver", mergulhamos num ambiente irremediavelmente tóxico, que cedo se evidencia como um pântano inescapável, não sabemos concretamente o que vai acontecer a seguir, mas nunca duvidamos da inevitabilidade de um final infeliz. Vê-se na maneira como as personagens falam (ou evitam falar), como equacionam possibilidades de sair dali, inconsciente ou conscientemente sabendo que nunca conseguirão concretizar essa escapatória. Nesse processo, a contribuição das atrizes é fundamental, da melancolia fúnebre e silenciosa de Vera Barreto, a mais sacrificada de todas elas, à ligeireza de Cleia Almeida, demasiado iludida para entender que a tragédia se aproxima da sua família, sendo a dinâmica entre Anabela Moreira e Madalena Almeida o que nos rouba a atenção. A primeira, uma mãe que não soube desempenhar esse papel, a segunda, uma filha desamparada, que ficou sem saber como se relacionar com o outro. Ao longo das duas horas de duração, ambas tentam, alternadamente, reconciliar-se, mas, é sempre tarde demais.

Em "Viver Mal", o cenário e os temas são exatamente os mesmos, só que o tom muda radicalmente. Trata-se de uma espécie de cruzamento malsão de melodrama histriónico e comédia de desespero, dissecando as frustrações daqueles personagens que já não sabem sequer como conviver sem se insultarem e humilharem mutuamente. Isso é particularmente notório no primeiro capítulo, centrado no "romance" de Nuno Lopes e Filipa Areosa, que Canijo resume lindamente nuns económicos 20-30 minutos, expondo a ligação perversa, mas, estranhamente comovente, que une aquelas duas almas, causando-lhes mais sofrimento que prazer e, ainda assim, impossibilitando uma verdadeira separação.

São dois filmes belíssimos, surpreendentes na intransigência com que abraçam um estilo eminentemente pessoal, que nos coloca sempre na posição de voyeurs (não podemos dizer que estejamos na posição das personagens, quanto mais não seja, porque nem sabemos o suficiente acerca delas para que esse processo de identificação se complete, pelo que, ficamos só ali, a observar pacientemente), que ultrapassam uma vasta gama de emoções (vamos rir, vamos chorar, vamos ficar desconcertados, etc.) e saiam do(s) visionamento(s) assombrados por aqueles rostos, aqueles lugares.

Tremendo.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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