Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "BEAU TEM MEDO"


Em 2008, Casey Affleck e Joaquin Phoenix idealizaram um esquema delirante que quase descarrilou as suas carreiras. Joaquin renunciaria à sua carreira de ator, sob o pretexto de ambicionar reinventar-se enquanto músico de hip-hop, enquanto Casey documentava o que lhe ia acontecendo à medida que procurava estabelecer essa segunda carreira. Resumidamente, essa era a base de "I'm Still Here", a primeira longa-metragem de Affleck enquanto cineasta.


À data, ninguém ficou muito contente com o aparecimento do filme. O público ficou confuso com o sucedido, a indústria sentiu-se enganada (alguns com muita razão...) e a crítica recebeu o filme com um encolher de ombros. No entanto, "I'm Still Here" envelheceu bem, tornando-se mesmo num pequeno fenómeno de culto. Entre os seus admiradores, encontra-se Ari Aster, o autor de "Hereditário" e "Midsommar - O Ritual", que se tem vindo a evidenciar como um dos mais idiossincráticos (e, consequentemente, fascinantes) cineastas do panorama contemporâneo (norte-americano ou não).

Para Aster, "I'm Still Here" foi um "gesto suicida" que o levou a contactar Joaquin Phoenix, que admirava desde "To Die For", para lhe oferecer o papel principal na sua terceira longa-metragem. Importa mencionar esse historial, porque "Beau Tem Medo" é também um "gesto suicida", um projeto megalómano, a meio-caminho entre o Kaufman de "Sinédoque, Nova Iorque" e o Miike de "Visitor Q", que importa os aspetos que caracterizam Aster enquanto autor (a estrutura importada da tragédia grega, a exuberância formal, a obsessão pela família como uma unidade fundamentalmente tóxica, etc.) para um contexto muito diferente do dos seus títulos anteriores.


Beau Wasserman (Joaquin Phoenix) vive num estado de permanente ansiedade, numa sociedade em declínio acentuado. As pessoas morrem "a torto e a direito" nas ruas que circundam o seu apartamento (uns suicidam-se, incentivados pelos vizinhos que querem "conteúdo" para colocar nas suas redes sociais, outros são brutalmente assassinados), os telejornais só comunicam desgraças, a sujidade é inescapável e todos os indivíduos com quem Beau se cruza são tremendamente antipáticos.

Beau prometera visitar a mãe, Mona Wasserman (Patti LuPone), com quem mantém uma relação doentia. No entanto, o mundo parece (literalmente) conspirar contra ele, "aprisionando-o" num labirinto de sucessivas provações, rumo a uma conclusão rocambolesca, demente e, inevitavelmente, trágica.

Se tudo aquilo que Beau testemunha ou experiencia é uma representação concreta e "fiável" daquela realidade ou não, é um mistério, no entanto, também é irrelevante. Aster não quer dirigir uma peça de realismo social, mas sim, colocar-nos na posição de alguém que se tornou prisioneiro das suas ansiedades exacerbadas. É inteiramente possível que o mundo em que se situa "Beau Tem Medo" possa ser um local bem mais agradável do que parece, só que não é assim que Beau o experiencia.


"Beau Tem Medo" insere-se, portanto, na honrosa tradição de filmes que sacrificam o realismo em prol do efeito, "estruturando" toda a narrativa como se de um pesadelo se trocasse. Ficamos logo com a ideia de qualquer coisa pode acontecer, contudo, o que quer que se passe, nunca beneficiará Beau (legitimando as tendências paranoicas que exibe durante todo o filme), Aster confessou recentemente que queria que a ver o seu filme fosse semelhante a experienciar um videojogo com um comando estragado, onde nenhuma das teclas faz aquilo que queríamos.

É um retrato tocante (e bastante "atual", à falta de um melhor termo) do que alguém que se sente completamente desamparado, num mundo incessantemente veloz, que o parece ter deixado para trás. Nesse sentido, não é possível evitar a maneira como Aster inclui uma componente marcadamente política no seu filme, dedicando quase todo o segundo ato a um segmento estranhíssimo, em que Beau é "adotado" por um casal de lunáticos que parece encapsular as promessas vãs do Sonho Americano.

Aster sempre gostou de brincar com as ferramentas do cinema, utilizando tudo o que o seu métier lhe coloca a disposição para nos atirar para o centro das suas narrativas, em "Beau Tem Medo", essa disponibilidade para o risco é levada ao extremo, cruzando comédia burlesca com terror sanguinolento, melodrama histriónico com um experimentalismo contemplativo, onde nem falta um belíssimo interlúdio animado. Inevitavelmente, alguns não conseguirão "entrar" na loucura de "Beau Tem Medo", tal é a radicalidade, estética e narrativa, daquilo que propõe, mas, uma coisa é certa, nunca vimos um filme assim e, quem sabe, se a oportunidade se volta a proporcionar.

Nasce aqui um clássico de culto, para arrumar junto de "Southland Tales", de Richard Kelly, ou "Under The Silver Lake", de David Robert Mitchell, outros títulos da autoria de cineastas norte-americanos, provenientes do meio independente, que ousaram investir o capital que conquistaram em sucessos passados em objetos indescritíveis e irrepetíveis.

Um assombro.


★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)