"Jeanne du Barry", entre nós, acompanhado pelo subtítulo "A Favorita do Rei", vem envolto em "ruído mediático". A "polícia da moral e dos bons costumes" defende que, ao selecionar Johnny Depp para interpretar o Rei Luís XV, Maïwenn se tornou cúmplice dos crimes do ator norte-americano, que, entretanto, Depp tenha sido inocentado em tribunal de ditos crimes, naturalmente, não importa a ninguém.
Porque vivemos num mundo governado pelos impulsos medievais de quem torna as redes sociais no esgoto da sociedade, cada passo da carreira do filme, da sua passagem no Festival de Cannes ao lançamento comercial nas salas de cinema francófonas (a hostilidade do clima pós-#MeToo, parece indicar que "Jeanne du Barry" possa saltar as salas no mercado norte-americano e ser atirado diretamente para o homevideo, de modo a evitar mais burburinho negativo em torno do seu coprotagonista), portanto, o melhor é mesmo baixar esse "ruído", até mesmo colocá-lo no silêncio (é só sair do X, antes Twitter, e não ler secções de comentários) e experienciar o filme de Maïwenn por aquilo que é, em vez de focar a discussão no que se diz acerca dos seus intervenientes, quanto mais não seja, porque "Jeanne du Barry - A Favorita do Rei" é mesmo muito bom.
Nele, Maïwenn dá corpo a Jeanne Bécu, uma acompanhante de luxo, com raízes humildes, que se tornou na amante predileta do Rei Luís XV (interpretado por Johnny Depp). Segue-se um filme incomum e, consequentemente, fascinante, a meio-caminho entre o melodrama íntimo e a desconstrução satírica, a contundência do realismo e a melancolia da fábula. É, acima de tudo, um romance, trágico por natureza, sobre o encontro de duas pessoas sós, que recorrem a múltiplas máscaras para sobreviver aos códigos dos ambientes em que se movem, aliás, nos seus momentos mais cómicos e, dir-se-ia, "ácidos", "Jeanne du Barry" assume os contornos de uma dissertação acerca da dimensão teatral de Versalhes, argumentando que, no fundo, qualquer forma de poder (político ou não) envolve, obrigatoriamente, algum tipo de encenação.
No entanto, mais que uma autópsia do microcosmos da realeza pré-Revolução Francesa, "Jeanne du Barry" é esse conto de um amor condenado, encenado com um espírito romanesco que comove, a espaços, dando origem a momentos de portentoso lirismo, remetendo para o cinema classicista, sem perder uma vibração ferozmente moderna. Naturalmente, ajuda que tanto Maïwenn como Depp se encontrem em topo de forma, contudo, importa não menosprezar a importância de um secundário de luxo, Benjamin Lavernhe, que, como criado de Luís XV, tem alguns dos mais momentos mais impactantes do filme.
Num momento em que Woody Allen e Martin Scorsese parecem ter mobilizado muitos espetadores portugueses a redescobrir os prazeres de um cinema que não menospreza a herança do classicismo, "Jeanne du Barry" é um sucessor digno dessa "iniciativa", saibamos recebê-lo.
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