"Reino Animal", a segunda longa-metragem de Thomas Cailley, começa com um engarrafamento. François (Romain Duris) e o filho, Émile (Paul Kircher), discutem um com o outro num dos muitos carros imobilizados. Émile, furioso, sai do carro e, consequentemente, François vai atrás dele. Subitamente, uma ambulância parada um pouco mais à frente começa a baloiçar. Num ápice, os enfermeiros são disparados para fora por um homem-pássaro que foge por entre os prédios. É um momento, de uma assentada, surpreendente, intenso e rocambolesco, que se torna, particularmente, divertido quando François e Émile, embasbacados, deparam com um outro automobilista apanhado no engarrafamento, que se vira para eles e lhes diz algo como "que mundo este não?".
Ainda nem 10 minutos passaram e Cailley, engenhosamente, já lançou o conceito do seu filme. Isto é, entramos num mundo alternativo, uma espécie de espelho distorcido da nossa realidade quotidiana, onde uma onda de mutações transforma humanos, aparentemente, normais em animais. Curiosamente, Cailley escapa aos clichés a todos os clichés basilares do cinema sobre epidemias bizarras, potencialmente apocalípticas. O filme começa algum tempo depois do aparecimento da patologia. As mutações continuam a corresponder a fenómenos estranhos, mas, o pânico inicial já ficou para trás, parece que, a sociedade nunca mergulhou num caos, porventura, anárquico e, ainda que Cailley não abdique de combinar géneros, o que mais sobressai é o drama.
Este é, afinal, um olhar sobre o amor que une Romain e Émile, pai e filho, que, paradoxalmente, tudo une e tudo separa. A matriarca da família sucumbiu aquela maleita sem nome, tornando-se num cão, abrindo um buraco entre os dois homens, Roman encontra um bom trabalho num vilarejo pacato, rodeado por uma floresta em que é proibido, por lei, entrar, não vá um cidadão descuidado cruzar-se com um dos infetados que se esconderam lá. Émile não gosta da ideia, mas, sendo menor, também não tem voto na matéria. Os dois mudam-se de armas e bagagens para o interior, enquanto a mãe é transportada numa carrinha que leva os humanos mutados para um estabelecimento médico nas imediações dali.
Só que a carrinha descarrila, permitindo aos tripulantes inumanos que escapem para a natureza, onde preferem (e, possivelmente, deviam) estar, semeando (ainda mais) a discórdia entre Romain e Émile. Segue-se uma epopeia fulgurante, simultaneamente, íntima e sociopolítica. Cailley é o primeiro a assumir que o que lhe interessa no cinema de género é a capacidade de derrubar barreiras, recorrendo a conceitos, teoricamente, mirabolantes para falar sobre "coisas" muito concretas.
Que "coisas"? Bom, para começar, a natureza humanista de "Reino Animal", impele-nos de mencionar o seu carácter de parábola sobre o amor de um pai pelo seu filho e vice-versa, é certo que a relação de Romain e Émile envolve convulsões que escapam aos limites da realidade como a concebemos, mas, reconhecemo-nos na sua dinâmica, sejam nos momentos quezilentos ou nos de ternura, para tal, muito contribuem Duris e Kircher exemplares, a todos os níveis, encarnado todas as nuances destas personagens tão específicas e, consequentemente, tão universais.
Depois, "Reino Animal" assume-se como um olhar, alegórico, claro está, sobre o atual "estado das coisas". Desde a sua passagem pelo Festival de Cannes, no passado mês de maio, já o "leram" de mil e uma maneiras. Há quem veja "Reino Animal" como um retrato da sociedade pós-pandémica, quem encontre nele uma representação simbólica de uma sociedade politicamente dividida, onde as sementes do preconceito, do ódio, começam a dar sementes, há também os que juram a pés juntos que se trata de um filme sobre transições de género e, na volta, toda a gente tem razão, como costuma acontecer com o bom cinema fantástico, o que "Reino Animal" sugere é uma mudança de lente, uma possibilidade de experienciar os debates que nos dividem noutro contexto.
Resulta, resulta muito bem mesmo. Não só porque Cailley sabe dosear o drama e a comédia, o suspense e o terror, mas, também porque não se esqueceu de compor personagens tremendamente complexas, que nos comovem sem esforço. E se, Duris e Kircher são destaques óbvios, não há como ignorar a notável Adèle Exarchopoulos e, especialmente, Tom Mercier, revelado no "Sinónimos", de Nadav Lapid, aqui a dar vida ao previamente mencionado homem-pássaro, numa performance extremamente física que é qualquer coisa de assombroso.
Um filme singular, singularíssimo e, portanto, imperdível.
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